Uma pesquisa rápida revela quatro ocasiões em que, por causa da politização do coronavírus, pessoas complexas, cheias de ambiguidades, nuances, quando não contradições, foram todas reduzidas a um conjunto limitado de características aparentemente deploráveis. Primeiro foi o médico Guido Céspedes, ainda em setembro de 2020. Depois foi a vez do senador Arolde de Oliveira, em outubro do mesmo ano. A eles se seguiram, já em 2021, o pastor Thiago Andrade de Souza e o também médico e professor da UFRJ Lécio Patrocínio.
Além do fato de serem todos homens, em comum essas pessoas tiveram a causa mortis: Covid-19. Mas não só. Elas também eram unidas pela crença de que o uso precoce de hidroxicloroquina era eficaz no combate à doença, faziam críticas às medidas restritivas, aos cientistas, à OMS e – a cereja do bolo! – se confessavam apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
Essas ideias imperdoáveis renderam aos falecidos alguma fama nacional, na forma de obituários que ressaltavam não os feitos de cada um, nem a dor dos que eles deixavam, e sim o fato de acreditarem na eficácia de um medicamento contra a Covid-19.
Afogados no seco
Ao ler as notícias de cada uma dessas mortes, não raro acompanhadas por reducionismos ainda piores, como “bolsonarista” ou “negacionista”, me perguntei primeiro qual a intenção por trás de um obituário humilhante desses. O diabinho no meu ombro esquerdo respondeu que a intenção era alertar as pessoas para o perigo da Covid—19 e para a ineficácia dos medicamentos. Já o anjinho, no ombro esquerdo, respondeu que a intenção é reduzir toda a experiência humana a uma ou outra ideologia política.
Dessa forma, esmaga-se e se comprime a vida para que ela seja exposta de forma a dar ao leitor/espectador/ouvinte a possibilidade de um veredito perverso: essa pessoa mereceu ou não mereceu a morte que teve.
Não à toa, as notícias das mortes desses quatro personagens, em fases diferentes da pandemia, suscitaram nas redes sociais as mesmas reações cheias de ódio. Gente dizendo que médico que não “acredita na ciência” tem mesmo que morrer. Outros provocando com um “quero ver tomar cloroquina agora”. Sem falar no uso desmedido de críticas à fé e à opção política.
E aqui tenho vontade de perguntar se por acaso a morte de um bolsonarista consumidor de cloroquina é menos digna do que a morte de um petista que há meses vive besuntado em álcool em gel. Mas é melhor não.
Mas basta uma pesquisa, também rápida (até porque a hora de entregar a coluna se aproxima), para descobrir que eram pessoas estimadas por muitas outras que certamente sentirão a falta delas. Por familiares, por amigos, por fieis, por pacientes e até por eleitores. São pessoas que nasceram, foram felizes aqui, infelizes ali, que sonharam, que realizaram alguns de seus sonhos e se frustraram em outros.
São pessoas que morreram no isolamento de um hospital. Afogados no seco. Que se desesperaram como um Ivan Ilitch ao receber o diagnóstico. Que, por um segundo ao menos, tiveram a esperança de se recuperarem – como as 6,99 milhões de pessoas que já se recuperaram dessa praga (praga, mas não peste) no Brasil. Que talvez tenham vislumbrado a morte, com sua promessa de oblívio, antes de serem envoltos pelas trevas silenciosas da inconsciência.
E isso tudo para se transformarem em obituários que mais parecem panfletos de guerra. Para se tornarem rostos condenáveis como hereges que cometeram o pecado mortal de não acreditar na ciência-ciência-ciência. Para virarem mote de piada, escárnio e deboche.
Mais do que um cadáver útil
Claro que não passou despercebido por mim o medo de que eu também me tornasse personagem dessa cobertura jornalística necrófila. Afinal, cometo cotidianamente o imperdoável pecado de fazer críticas sobretudo à imposição de medidas que, sinceramente, faz-me rir.
Agora mesmo dei uma tossidinha com mais força e fui correndo enfiar o nariz no pote de alho picado para ver se me restava olfato. E, ao longo dos últimos meses, não foram poucas as vezes em que me vi um tantinho paranoico, com medo de contrair o vírus e ter minha deliciosa experiência terrestre interrompida.
Estoicamente, contudo, sei que não tenho controle sobre isso.
Me resta, pois, apontar aqui a imoralidade que é reduzir as vítimas de Covid-19 que professam ideias com as quais não concordamos a meros cadáveres úteis no palanque político da pandemia. Com a esperança de que os mal-intencionados perceberam que a vida de uma pessoa, qualquer pessoa, é muito mais do que seu voto (talvez equivocado), sua esperança (talvez infundada) num medicamento ou ainda a desconfiança (talvez exagerada) com que essa pessoa vê certos aspectos da vida.
E, antes que me perguntem, estou bem, sem febre, olfato de quem sente cheiro de pipoca a quilômetros e aquela tossidinha de alguns parágrafos atrás foi só um pelo da Catota que fez cócega na minha garganta.
Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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