Aposte no revisionismo histórico do bem para provar ao mundo que você e sua família prestam muito mais do que eles pensam.
Só percebi que havia algo de bem pesado nos textos infantis do Monteiro Lobato quando comprei uma edição especial de “Reinações de Narizinho” e comecei a ler um pedaço por dia para o meu filho de 3 anos. Assim como eu, você deve ter lido isso a infância toda sem que ninguém achasse nenhum problema ali. Ficamos chatos, diriam alguns. Creio que não, melhoramos muito e infelizmente não podemos melhorar o passado. Ou melhor, não podíamos porque agora surgiu a fórmula perfeita de apagamento do passado podre da família.
Sempre tive uma antipatia profunda por revisionismo histórico, algo que conheci por meio do pessoal que nega o holocausto. Mais recentemente, o revisionismo sobre a política nacional chega ao cúmulo de refutar coisa gravada em vídeo. Agora, confesso que comecei a gostar. Essa ideia da bisneta do Monteiro Lobato de apagar o racismo da obra dele seria muito útil para melhorar o passado da minha família.
Monteiro Lobato, um dos grandes gênios da literatura brasileira, teve a infelicidade de viver no mundo real e ter defeitos próprios somados aos do tempo em que nasceu. Veio ao mundo quando ainda havia escravidão no Brasil e morreu em uma época na qual documentos legais e jornais registravam falas de pessoas negras dizendo que eram negras. Eram coisas do tipo “a preta Maria declarou ao delegado que presenciou os fatos”. Ele não foi o único antirracista de seu tempo. Até agora. Tudo tem conserto, inclusive os fatos.
Quem leu o romance adulto “O Presidente Negro” não tem dúvidas do que pensava Monteiro Lobato sobre um choque de raças entre negros e brancos. Estava na média dos intelectuais de sua época. Nem os abolicionistas foram antirracistas, havia preconceito como há até hoje, mas não falamos de um selvagem. Era muito crítico aos maus-tratos físicos a que o cidadão de bem costumava submeter os negros que serviam em suas casas, sobretudo as crianças. Faz uma crítica mordaz à sociedade em que vivia no conto “A Negrinha”, em que relata como se glorificava a boa senhora católica torturadora de criança.
Em junho do ano passado, a neta de Monteiro Lobato, Joice Kornbluh, participou do programa “Conversa com Bial”, e afirmou: “Nunca eu pensei racismo na minha vida. Não existia na família isso. Não só por parte do meu avô como por parte de ninguém.” O avô dela era membro fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo e defendia a Ku Klux Klan. Confesso que fiquei com inveja. Gostaria também de apagar o racismo da minha família e deve ser fácil porque foi bem mais modesto.
A gente não achava esquisito chamar a Tia Nastácia de “macaca de carvão”, por exemplo. A situação do Zé Carneiro, empregado do sítio ao lado que foi “adquirido” por Dona Benta e dormia no celeiro junto com Pedro Malasartes era perfeitamente normal quando minha bisavó lia os livros para mim. O fato de Tio Barnabé e Tia Nastácia não tirarem folga nunca nem saírem do sítio também era bem normal quando meus avós liam os livros para mim. De repente, já adulta, fui reler e me peguei pensando em que mundo a gente vivia.
Se você é jovem há tanto tempo quanto eu, basta puxar pela memória que vai ver a carga de racismo nas frases ditas por quem a gente mais ama há algumas décadas. Meu falecido avô uma vez me explicava porque não era racista, já que convivia desde pequeno com negros, algo comum entre imigrantes árabes colocados à parte da sociedade. Concluiu dizendo que não podia ser racista porque“dos negros aceito tudo, menos casamento”.
Minha bisavó materna, viúva guerreira que criou sozinha os 3 filhos, era filha de um capataz de fazenda de café no interior de São Paulo. Sempre me explicou com detalhes por que a família dela não era racista como as outras da região. As “negrinhas”, por exemplo, faziam só serviço dentro de casa e não iam para a lavoura. Ela e os irmãos tinham cada um uma “ama”, também negra, mas que não dormia no celeiro, dormia ao lado da cama deles, no chão.
Todos nós fomos educados pela fina flor do racismo, machismo e homofobia. Não havia e não há a vivência da igualdade, uma ideia muito nova historicamente, mesmo entre os que consideram racionalmente que somos todos iguais. Reproduzimos vícios que podemos corrigir, só que dá trabalho e a gente passa vergonha. Confesso que gostei bastante dessa alternativa da bisneta do Monteiro Lobato de reescrever a história da família limpando a sujeira.
Essa parte do racismo, machismo e homofobia, por mim, simplesmente deletaria da história da minha família. Tias velhas italianas que tinham birra com nordestino também jamais existiram. Gostaria também de omitir perversidades, tropeços emocionais, abandonos e prisões dos meus antepassados. Aliás, por questão de charme, manteria apenas as do meu pai e do meu avô paterno, que foram presos quebrando bancos em movimentos contra ditaduras. Agora tem um baita de um charme e, se depois perder, um filho ou um neto podem apagar isso da história.
Eu, por exemplo, já me considero exemplo de mãe que jamais errou. O dia em que eu levei o meu filho de 4 anos ao cinema ver Dead Pool sem saber do que se tratava e tive de sair correndo na primeira cena jamais existiu, já combinei com ele. E quando eu li “Reinações de Narizinho”, jamais comecei a gaguejar e mudar o texto nas partes absurdas. Nem parei no meio e troquei de livro para saber o que fazia depois. Sou uma mãe perfeita, sabia muito bem o que fazer.
Na história que eu pretendo apagar, eu recorri a alguém que entende de Educação na teoria e na prática, além de ter criado 5 filhos, Claudia Costin. Ela me orientou que lesse exatamente como está, um texto primoroso e parte da nossa história, mas contextualizasse explicando que nossos antepassados se comportavam assim. É uma forma de explicar por que as pessoas reclamam de preconceito e também de mostrar que é possível evoluir como indivíduo e como sociedade. Na nova versão de mim, fui eu que tive essa ideia.
A bisneta de Monteiro Lobato, Cleo Monteiro Lobato, resolveu reescrever os trechos racistas da obra dele. Brasileiro acredita em tudo, ela provavelmente crê que a qualidade será a mesma. Além disso, disse ao Correio Braziliense: “ Monteiro Lobato não era racista. Sei disso pela vivência familiar. Minha avó foi a filha que mais conviveu com Lobato” . Se o bisavô dela, fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo, não era racista, o meu é que vai ser porque falava bobagem? De jeito nenhum, vamos apagar tudo isso já.
Aqui estamos diante de um dilema lógico importante. A bisneta crê que Monteiro Lobato não era racista, portanto o entendimento dela sobre o que seria racismo é bastante elástico. Não era moda ser defensor dos atos da Ku Klux Klan em solo brasileiro como ele fazia mas, para a família, não é racismo. Poderíamos dizer que trata-se, portanto, de pessoas racistas reescrevendo um livro para fingir que nem os antepassados nem elas próprias são racistas? Não, seria cruel demais. São pessoas bem intencionadas, que querem impedir o racismo nas novas gerações.
A ideia de eliminar o racismo fingindo que nossos grandes intelectuais dos séculos XIX e XX não eram racistas parece ótima. Isso me dá o direito de fingir com convicção que ninguém na minha família jamais foi racista. E, melhor de tudo, ao passar pano para os meus, ainda acabo assumindo o papel de antirracista sem precisar nem mesmo fazer autocrítica. Lei do Mínimo Esforço, se não me engano, é cláusula pétrea da Constituição Brasileira.
“Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” é uma frase tão boa que foi repetida por diversas personalidades.
Seria de autoria do conservador Edmund Burke e repetida até por Che Guevara. Está na abertura da série “El Patrón del Mal”, da TV Caracol da Colombia, um documentário sobre a vida de Pablo Escobar. Vai dar bem certo apagar o racismo de Monteiro Lobato nas próximas gerações, um passo adiante para que possam repetir.
Por experiência própria, garanto que é bem doloroso contar aos filhos que as pessoas da nossa família não são perfeitas, às vezes fazem coisas horrorosas e só reconhecendo os problemas buscamos soluções. Fiz pensando que seria ótimo para que ele fosse honesto, consciente de quem é e tivesse esperança na redenção humana. Só que é dolorido, dá trabalho e arruma muito problema. Melhor essa gambiarra, a faxina moral no passado. Vou comprar o novo livro do Monteiro Lobato para ele. E viva a hipocrisia! Afinal, é só em hipocrisia e gambiarra que o Brasil realmente tem a liderança mundial.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo
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