Um dos maiores desafios que as democracias enfrentam é o de evitar que grupos que alcançam o poder para um exercício temporário, acabem por se perpetuar no comando político da nação.
Um dos mecanismos que a ciência política já diagnosticou que são comumente usados para esse fim são as Supremas Cortes. Composta por pessoas com mandatos vitalícios e sem responsabilidade política, o aparelhamento de órgãos judiciais é atualmente a menina dos olhos dos grupos autoritários.
Em toda a América Latina, o forte movimento de erosão democrática que marcou os primeiros quinze anos do século na região foi fortemente marcado pelo aparelhamento das Supremas Cortes.
O Brasil, a meu ver, ainda que não tenha chegado aos níveis de deterioração de países como Venezuela, não ficou totalmente livre desse movimento. Aliás, o fato foi de algum modo reconhecido por um dos ministros do Tribunal. Recentemente, o Ministro Marco Aurélio de Mello reconheceu que o STF se tornou um tribunal de boicote ao Presidente Jair Bolsonaro. Disse ele: “o STF está sendo utilizado pelos partidos de oposição para fustigar o governo. Isso não é sadio. Não sei qual será o limite”. Muitos observadores atentos veem no STF não um tribunal de controle jurídico, mas uma militância de boicote político. Os indícios desse fenômeno são inúmeros: decisões que esvaziam atribuições da União e do Presidente, perseguição a apoiadores, críticas públicas inoportunas e de caráter político-ideológico, duplo padrão de tratamento etc.
O fenômeno voltou a ocorrer nos últimos dias. O ministro Fachin, historicamente bastante próximo de grupos que hoje ocupam a oposição, proferiu monocraticamente – apesar da fragilidade da fundamentação e da ausência de precedentes no mesmo sentido – decisão que, sem embasamento sólido na Constituição, substancialmente impõe uma das agendas políticas da oposição no tocante a armas de fogo.
Conforme noticiou a Gazeta do Povo, “o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a resolução sancionada pelo Comitê Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (Gecex) que reduziu a tarifa de importação de revólveres e pistolas de 20% para zero (…). A decisão foi tomada após análise de um pedido feito pelo PSB”.
O que chama atenção na decisão não é tanto seu potencial de ofender direitos fundamentais básicos, mas o grau de minúcia que o ministro acredita poder determinar a partir de princípios abstratos. De fato, parece no mínimo extravagante que alguém acredite que a Constituição teria fixado implicitamente, por meio de seus princípios, a alíquota de importação de um bem.
Como salientou acertadamente o jurista Cláudio Ari Mello, na obra “Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” (p. 277), essa visão do direito de que tudo está nos princípios constitucionais (facilmente manipuláveis pelo STF) resulta na “conversão da constituição em uma espécie de Al Corão, onde se encontram preceitos normativos para todas as ações da vida política, social e privada”. Do jeito que a coisa vai, corremos o risco de que, em breve, Fachin diga o tipo de roupa, a cor do carro e o penteado que a constituição permite que o Presidente da República e seus apoiadores usem.
O ministro, além de tudo, afronta flagrantemente a Constituição que outorga claramente ao Presidente da República a fixação de alíquotas de importação, em seu art. 153, inciso I e § 1º, desde que “atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei”. Frise-se: em lei, não na cabeça de quaisquer dos ministros.
Para “fundamentar” seu voto, Fachin tentou afirmar que as políticas desarmamentistas decorreriam dos princípios constitucionais. A opinião, no entanto, não conta com argumento sólido. Fachin confunde a leitura defendida pela agenda de esquerda, que em matéria de segurança pública colheu péssimos resultados, com a Constituição. Tal confusão é descabida e tem efeitos negativos. É de se lembrar que o tema das políticas de armas foi bastante debatido durante a última eleição e a agenda imposta pelo ministro foi derrotada na urnas. Ademais, no caso, nem se está falando em relaxamento de requisitos para aquisição, posse ou porte de armas (o que também encontraria, de per se, óbice na Constituição), mas simplesmente da redução de alíquotas aplicáveis à sua importação.
Creio que posturas como a do ministro acabam por transformar a Constituição em uma “camisa de força” sobre a democracia, em que o único resultado legítimo das deliberações políticas seria aquele alinhado com a agenda política preferida por ministros do STF. Mas nossa Constituição, definitivamente, não é uma “camisa de força”. Ela impõe limites, sem dúvida. Contudo, deixa margem para acomodação, experimentalismo, alternância e aprendizado.
Atenta à pluralidade de nossa sociedade, nossa Constituição não elegeu expressamente uma política concreta quanto ao acesso a armas. Como em outros pontos, nossa Constituição foi compromissária nesse tocante. Ela não impôs a paulatina restrição de armas com um de seus princípios, de modo que qualquer medida que possa ter por impacto ampliar a circulação de pistolas e revólveres seria inconstitucional. Isso não está previsto em lugar algum da Constituição. Essa previsão simplesmente não existe. Dos princípios abstratos e vagos invocados pelo ministro (basicamente, vida, segurança e proteção do mercado interno) não decorre necessariamente qualquer política desarmamentista.
Pelo contrário, a Constituição previu o direito à segurança, e deixou para cada geração, por meio da democracia representativa, decidir como pretende concretizar esse direito. Uma das formas é a permissão controlada à posse de armas.
Inúmeros países que preveem em suas constituições o direito à segurança e o garantem de modo muito mais efetivo do que o Brasil – como Suíça, Noruega, Canadá, Nova Zelândia e, na América Latina, o Uruguai – permitem de modo bastante amplo o acesso a armas de fogo. Inexiste a correlação negativa alegada pelo ministro entre “acesso a armas” e “direitos fundamentais à vida e segurança”. Pelo contrário. Inúmeros dados apontam no sentido oposto.
O ministro também tenta, sem sucesso, criar uma dicotomia entre “segurança pública” e “autodefesa” (segurança privada), dando a entender que viabilizar os mecanismos para a última ocorreria necessariamente em detrimento da primeira. É algo completamente desprovido de fundamento. Como quase todo direito fundamental, a segurança possui um aspecto privado (o direito de se defender) e outro social (o dever do Estado de organizar um aparato para proteger esse direito). Entre as duas perspectivas não existe contradição, mas complementariedade.
Aliás, a Constituição aponta nesse sentido, uma vez que prevê a segurança como direito individual no art. 5º: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. E depois, em outro dispositivo, no art. 144, trata da segurança pública, onde deixa expresso: “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”.
O voto ainda invoca inúmeros dispositivos e tratados de direitos humanos, tentando de modo falacioso concluir que daquelas previsões vagas e abstratas decorreria necessariamente a ideologia desarmamentista.
Para perceber a falácia, basta ver os dispositivos citados e perceber que vários dos países que são signatários daqueles acordos possuem legislações pouco restritivas quanto a armas. O ministro, na verdade, tenta transformar suas opiniões subjetivas em comandos constitucionais, o que caso imposto por meio do Judiciário seria apenas mais um lamentável e triste caso de ativismo antidemocrático, afrontoso à divisão e harmonia dos Poderes.
Acredito que por qualquer ângulo que se examine a questão, é absolutamente inegável que princípios como vida, segurança e proteção do mercado interno, não resolvem logicamente a questão tratada no julgamento. A Constituição, nitidamente, deixa margem de discricionariedade quanto à forma de concretizar esses princípios. E como bem pontuou a Gazeta do Povo em recente editorial: “É a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, que define quais as melhores políticas de segurança pública (incluída, aí, a questão da posse e porte de armas), e não o Poder Judiciário.”
Por fim, vale salientar que Fachin não simplesmente votou pela inconstitucionalidade. O que já seria equivocado, como vimos acima. Mas ele foi além e derrubou a lei monocraticamente.
Já escrevemos sobre o abuso atual no tocante às decisões monocráticas. Esse tipo de decisão existe para dois fins: a) urgência em vista de risco de dano irreversível a direito provável, ou seja, casos extraordinários que não podem aguardar a instrução processual; b) casos em que a jurisprudência é consolidada, não havendo por que consumir a pauta do órgão colegiado.
No caso concreto, nenhum desses requisitos está presente. O fundamento constitucional invocado é frágil, não conta com precedentes do colegiado para situações com similitude demonstrada, tampouco há demonstração de urgência.
Logo, tendo em vista que o Presidente exerceu poder que a Constituição expressamente lhe concede; que o fundamento jurídico invocado por Fachin é frágil e inconsistente; que inexiste precedente que dê suporte juridicamente sólido à decisão; que ela impõe uma agenda política derrotada e restringe excessivamente o campo de atuação e deliberação dos órgãos representativos: cremos que se trata de decisão fortemente equivocada e que invade a atribuição de outros Poderes. O Brasil precisa debater com urgência os limites da atuação judicial e dos ministros monocraticamente, sob o risco de nosso regime democrático converter-se em uma clara e irreversível juristocracia.
André Uliano
Procurador da República. Mestre em Economia e pós-graduado em Direito. Professor de Direito Constitucional. Apaixonado por humanidades. Dedico meus estudos, particularmente, à teoria constitucional e à ciência política.
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