Mil desculpas por estragar o conto de fadas do casal paranaense e poluir seu dia com essa coisa chata chamada realidade.
Há milênios, não há narrativa mais encantadora na humanidade que a luta de Davi contra Golias. No caso Sleeping Giants Brasil, temos mais uma vez o repeteco. O casal de 22 anos de idade, narrado pela fina flor da aristocracia paulistana como “começando a vida”, empenha-se numa cruzada hollywoodiana do bem contra o mal e se revela em fotos com um tom artístico na Folha de São Paulo. Talvez a força do conto de fadas tenha feito com que escapassem várias perguntas relacionadas à realidade, essa coisa chata e fora de moda.
Como eu não vivo de concurso de Miss Simpatia, estou aqui sempre para ser chata e fazer as perguntas incômodas. Mil desculpas se estou destruindo o conto de fadas, mas o príncipe e a princesa em questão já são bem grandinhos para responder pelos próprios atos. Aliás, continuo à disposição para que respondam diretamente, quando quiserem.
Há um ponto comum importante entre a Bíblia e Nietzche. “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”, disse Friedrich Nietzche em Para Além do Bem e do Mal. “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor. Pelo contrário: ‘Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele’. Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem”, diz a carta de Paulo aos Romanos. Pode ser uma desilusão para muitos mas, talvez, o jovem casal do Sleeping Giants não tenha mais sabedoria que a Bíblia e Nietzche juntos.
Assim que a reportagem da Folha de São Paulo foi divulgada, endereços e fotos das casas da família do casal começaram a ser espalhadas pelo esgoto da internet. Conheço há anos muito bem a baixeza da técnica e sei dos efeitos na vida real. Não são apenas “doidos ameaçando bobagem na internet”, como alguns gostam de se iludir. Entre eles sempre há um ou outro disposto a transformar a fantasia em vivência real. Exatamente por isso não compreendo por que esse casal e seus apoiadores defendem exatamente a mesma pauta de quem os persegue: o direito ao anonimato e a confusão desse conceito com o de pseudônimo.
Quando se começou a falar em “gabinete do ódio” no governo Bolsonaro, vi diversas vezes aparecer “apenas um menino de 18 anos que estava lutando contra o establishment sozinho”. Agora os “meninos” são mais crescidinhos, provavelmente você já fosse adulto nessa idade mas, sabe como é, andamos chamando até o Neymar de garoto. No mundo dos adultos, “garotos” tudo podem. Até chegar uma tia chata, mais conhecida como “eu”, para perguntar a eles o que os tios legais não perguntam.
Já perdi a conta de quantas vezes questionei autoridades sobre a permissividade com relação ao anonimato nas redes sociais, algo que não é permitido no Brasil. A ADC 51 trata dos casos em que as plataformas protegem até criminosos comuns, envolvidos em tráfico de drogas, por exemplo. Moralmente, jamais tive consideração por opiniões anônimas, embora respeite as ressalvas que me fazem os especializados em Segurança Pública sobre a importância do anonimato em circunstâncias específicas da área deles.
As 20 perguntas que não foram feitas ao Sleeping Giants
1. Por que as contas de Twitter de vocês foram criadas apenas neste mês de dezembro?
2. Por que vocês omitiram a campanha de desmonetização contra a Gazeta do Povo?
3. Vocês dizem desmonetizar sites que fazem “discurso de ódio”. De que forma desmonetizar quem não demite alguém que fez um vídeo pessoal que vocês classificam como “discurso de ódio” se encaixa na estratégia?
4. Vocês afirmam que o perfil avisa marcas sobre anúncios automatizados em sites que fazem discurso de ódio. Tentar intimidar uma jornalista específica a pedir a demissão de um colunista se encaixa nessa estratégia?
5. Vocês fizeram uma campanha pela “não culpabilização de vítimas”. Porque, nessa mesma campanha, elogiaram uma empresa que efetivamente culpabiliza vítimas?
6. Vocês afirmam que agiram contra o Porta dos Fundos da mesma forma como agem com sites de direita. Em que momento pediram a desmonetização deles?
7. Vocês afirmam que o Sleeping Giants não é um movimento de cancelamento e não desmonetiza quem retifica erros. A Gazeta do Povo publicou, no primeiro dia da campanha contra um vídeo no YouTube pessoal de um colunista, um texto sobre o tema. Por que a campanha continuou?
8. Vocês dizem discordar da afirmação de Olavo de Carvalho de que “jornalistas devem ser tratados a pontapés”. Por que cobrar pessoalmente uma jornalista que demande a demissão de uma pessoa e elogie uma empresa que a prejudicou? E porque, diante da reclamação dela, dobrar a aposta dizendo que ela não entendeu a boa intenção de vocês?
9. Quais empresas são aliadas de vocês e em que consiste exatamente essa parceria?
10. Por que vocês escolheram como forma de pressão sobre o Pag Seguro especificamente um único investidor, o fundo de pensões do Canadá?
11. Quem fez a plataforma de vocês no Bonde, da ONG Nossas? É um serviço pago ou uma parceria?
12. Vocês dizem não focar nas redes sociais porque preferem focar nos “donos do dinheiro” e que são muito novos na internet. Por favor, expliquem melhor de que forma são novos, não preparados e, ao mesmo tempo, se consideram especialistas e fazem trabalhos acadêmicos sobre o tema.
13. Vocês dizem ter retirado R$ 1,5 milhão em anúncios de sites. Em quanto isso afetou o faturamento mensal de cada site? O negócio em si foi afetado negativamente pela desmonetização ou o ataque gerou uma reação de apoio que compensou financeiramente?
14. Vocês dizem que tiveram apenas contatos iniciais com Matt Rivitz, fundador do Sleeping Giants. Qual a relação de vocês com Nandini Jammi, co-fundadora que deixou a empresa acusando Matt de machismo?
15. O sexismo de um economista de direita em seu canal pessoal de YouTube justificou uma campanha de desmonetização contra todas as empresas que se recusaram a demiti-lo. O sexismo de um grupo progressista de humoristas rendeu um aviso delicado e depois um elogio. Como vocês vêem o sexismo de Matt Rivitz e como definem qual sexismo é discurso de ódio ou não?
16. Muitos dos seguidores do perfil criado por vocês repetem ataques em enxame que vocês classificam como “discurso de ódio”. Como vocês lidam com essa responsabilidade?
17. Vocês saíram do anonimato e dizem que agora vão responsabilizar todos os que agiram fora da lei contra vocês. Vão também se responsabilizar por injustiças que cometeram?
18. Arrependem-se de alguma ação ou algum alvo do perfil?
19. Vocês dizem combater o discurso de ódio e os alvos são o grupo ligado a Olavo de Carvalho. Ao mesmo tempo, utilizaram anonimato, ataque em massa, gaslighting, desumanização de pessoas atacadas e narrativa de David x Golias, praticamente a cartilha da milícia virtual olavista. Já se questionaram eticamente sobre isso? De que forma esperam ter resultados diferentes utilizando os mesmos métodos?
20. Vocês dizem que não escolhem pessoas como alvos, então uma última dúvida: vocês mentiram ou eu é que estou mal informada e não sou uma pessoa?
Assim que tivermos a honra de receber as respostas, elas serão publicadas. Aviso que, ao contrário dos colegas menos chatos que eu, costumo questionar respostas que não coincidem com a realidade, o que me rendeu apelidos carinhosos pelas costas, como Darth Vader. Peço antecipadamente desculpas por não acompanhar meus colegas no deslumbramento com a história idílica do casal jovem e imaturo que tem 22 anos, mora com os pais e faz faculdade. Eu já era arrimo de família aos 19 anos de idade e dava a cara, apresentadora do São Paulo Agora da Jovem Pan.
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Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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