Em circunstâncias normais, o fato de uma corte suprema decidir que a Constituição realmente quer dizer o que nela está escrito, e que o que ali está escrito deve ser seguido não mereceria mais que uma nota de rodapé. Em circunstâncias realmente normais, na verdade, uma corte suprema nem precisaria se dar ao trabalho de analisar se a Constituição realmente quer dizer o que nela está escrito, e se o que ali está escrito deve ser seguido – essas conclusões deveriam ser automáticas. Mas, graças à disfuncionalidade brasileira, é preciso, sim, saudar o fato de o Supremo Tribunal Federal ter defendido a Constituição, ainda que pela mais estreita das margens.
Depois de, na sexta-feira, tudo indicar que o Supremo daria seu aval à possibilidade de reeleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP) nas presidências da Câmara e do Senado, o fim de semana viu uma reviravolta que deixou o placar em 6 a 5 em favor da aplicação do texto constitucional, que veda explicitamente a reeleição para qualquer posto das respectivas Mesas Diretoras dentro da mesma legislatura. O ministro Marco Aurélio Mello, ainda na sexta-feira, havia aberto a divergência destacando a “clareza inequívoca – porque em bom vernáculo” do parágrafo 4.º do artigo 57, que não “enseja interpretações diversas” porque “é categórico”. Cármen Lúcia escreveu que “a norma é clara; o português, direto e objetivo”. Edson Fachin tratou a vedação à reeleição no terceiro ano da legislatura como “a interpretação que se me afigura como sendo a única possível do texto constitucional”. Luiz Fux, presidente da corte, afirmou que o texto em questão “não consiste em norma principiológica, com elevado grau de abstração, ou que comporte múltiplos sentidos”. A única possibilidade de reeleição que os ministros reconheceram é aquela ocorrida na passagem de uma legislatura para outra – o próprio Rodrigo Maia já se beneficiou dessa prática, tendo comandado a Câmara em 2017 e 2018 e reelegendo-se para o biênio 2019-2020.
A opinião pública foi a maior defensora do respeito à Carta Magna, contra ministros que estavam dispostos a ignorá-la
Todas as informações de bastidores do STF eram unânimes ao indicar que havia maioria de pelo menos sete votos em favor da possibilidade de reeleição, mas a pressão da opinião pública, desta vez, foi decisiva para reverter um resultado que parecia certo. Isso não quer dizer que deva ser sempre o clamor popular a guiar os votos dos ministros do Supremo; seu critério fundamental é, e jamais pode deixar de ser, a fidelidade à Constituição. Ocorre que, desta vez, foi justamente a opinião pública a maior defensora do respeito à Carta Magna, contra ministros que estavam dispostos a ignorá-la, com o apoio de órgãos como a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União, ambos favoráveis à hipótese de reeleição no terceiro ano de cada legislatura.
Está bem claro, portanto, o recado: se os parlamentares quiserem alterar a regra constitucional e permitir a reeleição dentro da mesma legislatura, que não usem o Supremo como atalho, e aprovem uma emenda à Constituição – a PEC para tanto até já existe, tendo sido apresentada pela senadora Rose de Freitas (Podemos-ES). Aliás, foram vários os ministros que, em seus votos, lembraram que o Congresso já teve essa oportunidade quando aprovou a Emenda Constitucional 50, em 2006, ocasião em que deputados e senadores se limitaram a uma alteração mínima, apenas cosmética, no parágrafo 4.º do artigo 57, substituindo a expressão “dois anos” por “2 (dois) anos”.
Se esta batalha está vencida, o mesmo não se pode dizer da guerra. Afinal, apesar de toda a clareza do texto constitucional que estava em jogo, ainda houve cinco ministros dispostos a relativizá-lo. O ativismo judicial continuará sendo tentação permanente no STF. Em trecho de seu voto que já ficou célebre, o relator Gilmar Mendes afirmou que “o afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo, e assim esteirar-se em princípios de centralidade inconteste para o ordenamento jurídico”.
Mesmo ministros que votaram contra a reeleição compartilham de mentalidade semelhante. Luís Roberto Barroso, por exemplo, escreveu em seu voto que “a literalidade de um texto não é a única ou a melhor forma de interpretá-lo, mas as possibilidades semânticas que o texto oferece figuram como limite ao papel do intérprete” – no caso em tela, ele reconheceu que havia um limite intransponível, mas em outros temas mais caros ao ministro isso não ocorreu, ainda que se tratasse de norma igualmente clara. A missão de um integrante do Supremo continua a ser a de defender a Constituição, não a de reescrevê-la de acordo com as próprias convicções ou conveniências políticas.
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