A Constituição brasileira é clara ao fixar os mandatos das mesas do Congresso a dois anos e estabelecer que é “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. É sempre possível à criatividade humana desafiar o sentido das palavras. E um risco quando se trata do direito e da Constituição, onde levar a sério as palavras significa levar direitos a sério.
É o tema neste episódio da sucessão de Maia e Alcolumbre no Congresso. Para além de juízos de maioria ou minoria, a Constituição consagrou o valor da alternância de poder. O reconhecimento de que não faz bem ao país a tentação do uso da máquina do próprio parlamento para a preservação do poder.
Não faz sentido que integrantes da suprema corte façam juízos políticos quando se trata de garantir o que está escrito na Constituição
Neste episódio, porém, há algo mais em jogo: a própria ideia de que o que está escrito na Constituição não é uma banalidade passível de interpretação a gosto de uma eventual maioria na Câmara ou no Senado. A tese simples e essencial de que não é a “autonomia dos poderes” que disciplina o uso da Constituição, mas a Constituição que disciplina o funcionamento dos poderes. Tese que põe por terra o argumento sem nexo, que se escuta por aí, segundo o qual fixar as próprias regras de sucessão é um problema interna corporis do Congresso.
Não é. A regra já foi dada pela Constituição. A Carta que deve funcionar, como diz meu conterrâneo Lênio Streck, como um “remédio contra as maiorias” e a “voz das ruas”. Neste caso, diria, a voz dos corredores do Congresso.
Leio coisas ainda mais estranhas, como a ideia de que ministros do Supremo avaliem como positivo o atual “arranjo político” e a contenção do Executivo feita por Maia e Alcolumbre. E que seria uma boa ideia manter os atuais presidentes. Não faz sentido que integrantes da suprema corte façam este tipo de juízo quando se trata de garantir o que está escrito na Constituição.
É certo que o avanço dos tribunais sobre o parlamento já vai longe. Em dezembro de 2019, o Supremo promoveu um debate com líderes partidários sobre a possibilidade das candidaturas independentes. O tema continua na pauta do STF. À época, o ministro Barroso dizia que era preciso entender “se o Supremo tem caminhos para decidir sobre o assunto”, ou se isto caberia ao parlamento. O dado singelo é que a Constituição diz que a filiação partidária é “condição de elegibilidade” e, ao menos até onde se saiba, cabe ao Congresso (e, em alguns casos, nem mesmo ao Congresso) mudar a Constituição.
Caso notório foi o tratamento que o Supremo deu a dois elementos centrais do pacote anticrime aprovado em 2019 pelo Congresso. O primeiro foi o devido ajuste feito na exigência de revisão de prisões preventivas a cada 90 dias. Havia um clamor popular e o Supremo decidiu que a regra aprovada no Congresso não era bem assim. Quanto ao “juiz de garantias”, foi simplesmente suspenso em decisão monocrática.
O caso mais banal talvez tenha sido a reintrodução pura e simples da censura prévia na vida brasileira. Dado que feita contra os “indesejáveis”, pouca gente chiou. O tema mereceu o curioso argumento, de ministro do Supremo, segundo o qual se tratava de uma “curadoria”, e que proibir alguém de usar o Facebook não significava ferir sua liberdade de expressão, visto que ele poderia seguir falando o que quisesse, imagino que gritando pelas ruas ou via sinais de fumaça.
O avanço dos tribunais sobre o parlamento já vai longe. A pergunta é se próprio Supremo não vem criando incentivos para que o mundo político o tome como instância moderadora
Sob certo aspecto, trata-se de um tema sem solução. Como bem disse o ministro Fux em seu discurso de posse, o próprio mundo político usa o Supremo para lidar com seus desacordos. E as pessoas tendem a reclamar do ativismo judicial apenas quando a coisa mexe em seus interesses ou paixões do momento.
A pergunta é se próprio Supremo não vem criando incentivos para que o mundo político o tome como instância moderadora. A judicialização e a interferência crescentes, para a qual não há outro remédio que a autocontenção. No fundo, a renúncia à tentação da política em nome da guarda e da estabilidade da Constituição em meio ao vai e vem das maiorias e urgências cotidianas da democracia. Este episódio da sucessão no comando do Congresso será um bom teste neste sentido.Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
Fernando Schüler
Fernando Schüler é doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Columbia University, em NY. É Professor no INSPER, em São Paulo, e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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