O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), jura que a receptividade à sua ideia de uma nova Constituição para o Brasil foi boa. Mas quem veio a público se manifestar sobre a proposta não hesitou em criticá-la ou, pelo menos, distanciar-se dela: entidades de juízes, membros do Ministério Público, parlamentares importantes como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), até mesmo expoentes do Centrão e o próprio Palácio do Planalto. E fazem bem, pois a ideia de uma nova Constituição, ainda que seja legítima e esteja amparada em bons argumentos, não seria oportuna neste momento mesmo que fosse sugerida com a melhor das intenções.
Comparações com o Chile, que acabou de decidir em plebiscito pela elaboração de uma nova Constituição, não se aplicam. Os chilenos decidiram repelir uma carta redigida durante a ditadura de Augusto Pinochet; ainda que bastante emendada desde o fim daquele regime, não deixa de ser uma herança de um período autoritário da história do país. Uma nova Constituição, portanto, seria o encerramento do ciclo de redemocratização no Chile. O Brasil já passou por essa etapa em 1988; desde então, não houve nenhuma grande mudança institucional que justifique abolir completamente a Carta Magna e redigir outra, a partir do zero.
Pelo contrário: como bem lembrou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), foi a Constituição de 1988 que permitiu ao país passar por momentos delicados como dois impeachments de presidentes da República, crises econômicas e desavenças entre poderes, transições de poder entre grupos políticos radicalmente distintos. Isso porque Constituições são âncoras, fundamentos que garantem estabilidade nos momentos difíceis – o Brasil tem vivido tais momentos em profusão; o mais recente é a pandemia do coronavírus, que trouxe consigo, ainda por cima, o risco de violações de direitos constitucionais nas medidas usadas para combater a Covid-19. Propor uma nova Constituição em momentos de mar bravio, como parece ser a prática recente no Brasil, é desconhecer tanto a história quanto a própria força de um documento como a Constituição.
A ideia de uma nova Constituição, ainda que seja legítima e amparada em bons argumentos, não seria oportuna neste momento mesmo que fosse sugerida com a melhor das intenções
Isso não significa que nossos fundamentos estejam livres de problemas. Eles existem, e alguns deles são reflexo das circunstâncias da redação da Constituição de 1988. O Brasil mal saíra de um regime autoritário; como reação, o constituinte incluiu no texto uma série de direitos e cláusulas pétreas sem a devida contrapartida do cidadão em termos de deveres (problema, aliás, apontado também por Ricardo Barros). A Carta Magna adota uma visão do Estado como garantidor de uma série desses direitos, mas engessou a administração pública ao implantar várias regras orçamentárias – a ponto de sobrar uma porcentagem mínima para investimentos de escolha do governante de turno. E, por fim, sua própria extensão é um problema em si: quando quase todo aspecto da vida nacional é constitucionalizado, as alterações se tornam ainda mais difíceis e a corte constitucional brasileira, o STF, fica sobrecarregada.
Portanto, não há nada de errado em desejar para o Brasil uma Constituição mais enxuta, menos engessada, que equilibre melhor as competências do Estado e da iniciativa privada, que dê ferramentas para um combate mais efetivo ao crime e à corrupção, que compreenda a necessidade do equilíbrio fiscal – este é um desejo legítimo e até meritório. Mas pelo menos algumas dessas mudanças podem ocorrer por emendas ao texto atual, e elas vêm sendo feitas, ainda que em ritmo mais lento que o necessário. Restam as limitações mais profundas, que realmente só poderiam ser sanadas com uma nova lei maior; mas isso exigiria um outro momento, de absoluta tranquilidade e serenidade, bastante diferente daquele que vivemos hoje, de turbulência e polarização.
Mas as críticas que Ricardo Barros faz à atual Constituição não se limitam àquelas feitas também por muitas outras pessoas. Movido por uma compreensão totalmente equivocada, a nosso ver, sobre o papel do Judiciário e de órgãos de controle e fiscalização, o deputado ressaltou sua intenção de colocar um fim na “chantagem” e na “intimidação” impostas aos membros do Legislativo pela Justiça e por esses órgãos, citando “juízes, promotores, fiscais da Receita, agentes do Tribunal de Contas da União, da Controladoria-Geral da União” que “provocam enormes danos com acusações infundadas e nada respondem por isso”. A observação foi feita sem citar exemplos, como já é o costume quando o assunto são os supostos “excessos” e “abusos” de instituições como o MP, e sem diferenciar entre o firme combate à ladroagem e as situações em que, é preciso admitir, há, sim, interferência indevida sobre prerrogativas dos gestores e legisladores, como a definição de políticas públicas.
O deputado diz que o Legislativo “se sente acuado”. Talvez estivesse, quando operações de combate à corrupção como a Lava Jato – da qual Barros é crítico contumaz – começaram a mostrar ao país a extensão da podridão das negociatas por apoio parlamentar na era petista. Mas hoje não parece mais ser assim. Um Legislativo “acuado” não aprova absurdos como a Lei de Abuso de Autoridade (relatada na Câmara pelo próprio Ricardo Barros), não desfigura o pacote anticrime, não tenta abrandar leis como a de lavagem de dinheiro e da improbidade administrativa. Esse tipo de atitude só é possível quando o Congresso se sente capaz de fazer o que bem entender, ao arrepio do anseio da sociedade brasileira por mais lisura no trato do dinheiro do contribuinte.
Mesmo com toda a repercussão negativa, Barros afirmou que enviará em breve um projeto de decreto legislativo – que tramita como um projeto de lei normal, mas não depende de sanção presidencial – prevendo a realização de um plebiscito sobre a redação de uma nova Constituição. Se o líder do governo realmente insistir na ideia, que os parlamentares a derrubem o quanto antes. Apesar de todas as críticas que se possa fazer à carta de 88, substituí-la agora seria um enorme risco – e fazê-lo para amarrar os órgãos de fiscalização e controle seria insensatez ainda maior.
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