Desconfio que não exista um único veículo de imprensa no Brasil que não tenha publicado opiniões fortes sobre a ação que a Defensoria Pública da União move contra o Magazine Luiza pelo programa de trainees só para pessoas negras. Vivemos a era da apoteose da superficialidade na sociedade do espetáculo, um tempo em que nos sentimos obrigados a ter opinião sobre tudo e a valorizar o que mobiliza atenções, varrendo para baixo do tapete o que é fundamental para nós e para a sociedade.
Não vou dizer qual a minha opinião sobre o programa de trainees negros por um motivo nobre: ela não tem a menor importância e não vai contribuir para nada na sociedade. Aliás, eu nem sei se tenho informação suficiente para opinar sobre isso ou se só tenho sentimentos e perguntas. A minha opinião é sobre como nossas instituições lidam com esse debate e eu te convido a pensar sobre isso.
Se você busca informações relevantes para compreender por que empresas decidem por programas do tipo, quais os exemplos no mundo e o que as pesquisas acadêmicas mostram sobre os efeitos desses programas, leia a reportagem do Leonardo Desideri aqui na Gazeta do Povo. Ele investiga os programas em si e traz diversas explicações considerando argumentos contra e a favor. A minha parte aqui é outra, discutir se faz sentido a Defensoria Pública da União ajuizar uma Ação Civil Pública contra a empresa pelo programa de trainee.
É interessante que a simples existência da ação gerou um debate que prescinde da análise do seu conteúdo: poderia o Estado brasileiro alegar defender os que foram excluídos do programa de trainees negros? É uma pergunta incendiária, respondida mais com o fígado e nossa memória de vida e humilhações do que com o cérebro. E por isso, por provocar emoções eletrizantes, esse ponto é o mais debatido. Debatemos os sintomas e ignoramos a doença, sua causa e se tem cura. Colocamos sistematicamente band-aids em fraturas expostas simplesmente porque a economia da atenção valoriza o que dá engajamento.
Há algumas perguntas que precisariam ser feitas não apenas neste caso do Magalu mas em todos os outros que envolvem carreiras de Estado com estabilidade, remuneração vitalícia e salário inicial equivalente a 5 vezes a renda média das famílias brasileiras:
– É essa a função deste profissional?
– O trabalho foi feito de forma eficiente?
Parece muito óbvio que o Estado brasileiro decidiu dar a diversas carreiras privilégios quase inimagináveis porque se imaginou que a função desses profissionais seja central. Defensores, promotores, procuradores e juízes precisam ter independência, agir rigorosamente de acordo com a lei e a garantia dos direitos dos cidadãos e, para isso, enfrentarão pressões políticas e pessoais terríveis. Ao longo da carreira, cada um desses profissionais terá de manter sua conduta reta, diante de diversas trocas de governo, diretrizes, momentos políticos e comoções nacionais. É por isso que se dá a eles um generoso colchão de segurança financeira e pessoal, para que retribuam ao Brasil na defesa dos interesses do povo, apesar das pressões.
Essa lógica de raciocínio nos leva a enxergar como a discussão errada e a sociedade do espetáculo despertam o pior de cada um dos indivíduos que selecionamos para uma tarefa fundamental e que exige retidão e equilíbrio. As 3 grandes religiões monoteístas – cristianismo, judaísmo e islamismo – pregam que onde há vaidade não há Deus. Em um dos meus filmes preferidos, o Advogado do Diabo, a fala mais famosa de Al Pacino é: “a vaidade é meu pecado favorito”. Nós, como sociedade civil, sucumbimos à tentação dos debates que alimentam as vaidades, esquecendo que funcionários públicos não são heróis, são seres humanos.
Qual a função da DPU?
A Defensoria Pública da União, do jeito que é hoje, surge depois da Constituição de 1988. Mas a origem dela é na década de 1920, quando o Brasil tomou a decisão de não mais permitir que pessoas fossem julgadas na Justiça Militar sem ter defesa. Naquela época, a função chamava Advogado de Ofício. A DPU foi criada por uma lei em 1994 mas suas atribuições foram alteradas na Lei Complementar 132/2009.
“Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal (o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos)” – diz a Lei Orgânica da DPU.
No último concurso anunciado, que seria em julho deste ano e foi suspenso pela pandemia, o mínimo que um Defensor Público Federal ganharia para exercer essa função é R$ 24.298,40, com independência funcional, estabilidade e aposentadoria integral. A renda média das famílias brasileiras gira em torno de R$ 5 mil.
Segundo a ANADEP, Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, o Brasil conta com cerca de 6 mil profissionais da categoria nos 27 Estados da Federação, responsáveis por atender todos os necessitados do Brasil, percentual calculado em 130 milhões de pessoas. A carreira é dividida em 3 patamares. O salário inicial é para quem atua na primeira instância, os que atuam nos Tribunais Regionais e Justiça Recursal ganham no mínimo R$ 27.374,86 e os que atuam no STJ ganham no mínimo R$ 30.546,13.
O número de defensores é absolutamente insuficiente para atender toda a população brasileira e esses cargos são pagos a peso de ouro por várias razões. A primeira é ter como enfrentar as pressões. A outra é saber priorizar quais são as demandas mais urgentes do povo. Obviamente, com um salário desses, não se espera nem é possível que se desculpe qualquer atuação abaixo da excelência. Isso é teoria, vamos à prática, partindo deste caso específico, que é espelho do dia-a-dia, não exceção.
Temos um Defensor Público Federal que decidiu processar uma única empresa por um programa de trainees só para negros, prática feita há anos por diversas empresas no Brasil. Do outro lado, temos defensores que dedicaram seu tempo a fazer uma gloriosa nota de repúdio ao colega, escancarando o nome dele e falando do quanto consideram boas as políticas afirmativas. É essa a prioridade dos necessitados brasileiros? É essa a função da DPU? Deve ser, porque até agora não vi ninguém questionar.
Por que só a Magalu?
A nós, cidadãos brasileiros que financiamos a DPU, a primeira pergunta é por que a ação só veio agora e só tem uma única empresa se programas específicos para minorias existem há anos no Brasil, em diversas empresas, dos mais variados setores e até maiores que o Magazine Luiza. Não creio que o fato de o trainee do Magalu ter bombado na imprensa, nas mídias sociais e Luiza Trajano ter emplacado um Roda Viva tenha relação com isso. Deve haver alguma boa explicação para não incluir todas as outras empresas que fazem isso, infelizmente não está escrita na Ação Civil Pública que cobra R$ 10 milhões em danos coletivos.
Aqui, pouco importa o que eu penso ou deixo de pensar desses processos seletivos. O fato é que eles existem há anos, alguém a quem pagamos um salário mais que generoso para defender o povo mirou só em um, só agora e deixou os demais de fora sem explicar as razões. Além disso, outros defensores, contrários à ação, decidiram esculachar o colega na imprensa em vez de agir. Posso estar muito errada, mas não me parece uma forma de debater o tema que sirva à sociedade.
“Ah, mas o que você faria se estivesse no lugar deles?”, invariavelmente me perguntam. Só poderei responder no dia em que chegar ao nível espiritual de um salário vitalício garantido de R$ 30 mil, estabilidade e independência funcional à prova de qualquer sacolejo da vida. Por enquanto, estou nesse barco onde você provavelmente se encontra, aquele que pode afundar por COVID, política econômica, mudança de governo, doença, queda de produtividade. Demos privilégios a pessoas que protejam os mais necessitados das piores turbulências da vida e precisamos avaliar se o trabalho feito está no nível daquilo que custa.
Basta uma rápida busca no Google para descobrir que, além da Magalu, estão com processos seletivos próprios só para negros abertos no momento: a Ambev, a Bayer, os Médicos Sem Fronteiras, a Amaro e a Vivo, para ficar na primeira página de links. No último dia 30 de setembro, ofereceram vagas só para universitários negros no gigantesco evento online Afropresença: Ambev, Anima, Basf, Bayer, Belgo, Bradesco, B2W, Coca-Cola, Colgate, EF, Febraban, Google, Itaú, John Deere, JP Morgan, LinkedIn, Mattos Filho Advogados, Natura, PWC, Santander, Suzano, Tim, Totvs, Unilever, Vivo, White Martins e Yduqs.
Se todas essas empresas têm processos seletivos abertos com os mesmos critérios e tanto o defensor quanto diversos deputados consideram injusto e ilegal, por que pouparam todo esse pessoal que tem programas semelhantes ao da Magalu? Por que os defensores contrários à ação não mencionam isso? Duvido que eles nem sabiam e só entraram na polêmica que bomba na imprensa para aparecer, ganham o suficiente para estar acima dessas falhas demasiadamente humanas.
O caso Magalu é um método
Não é caso isolado, é um padrão de comportamento simbiótico entre funcionários públicos regiamente pagos, a sociedade sedenta por Justiça e a mídia que hoje vive de cliques. O grande problema dele é que, além da catarse e da sensação energizante das manifestações públicas, não tem nenhum outro efeito. Eu não vou cair na tentação de apontar o dedo para o defensor, as colegas dele ou os parlamentares oportunistas. Somos todos parte e colaboradores desse sistema insano, inclusive eu e a mídia, da qual faço parte.
Atualmente, temos um verdadeiro festival de pedidos de impeachment de governadores e prefeitos, sempre com operações fantásticas de busca e apreensão curiosamente flagradas pela imprensa. Os nomes dos heróis responsáveis por enfrentar os bandidos incrustados no poder são aplaudidos na imprensa, o povo vibra, clica em cada notinha nova do escândalo. E eu pergunto: os oportunistas nessa história são só os políticos?
Os casos de pedidos de impeachment têm todos a mesma semente: o dia em que a imprensa brasileira fez a bobagem de esculachar o Ministério da Saúde por uma orientação absolutamente correta. Quando estourou a pandemia, foi necessário comprar emergencialmente insumos que não faziam parte das compras normais e, ao mesmo tempo, o preço desses materiais disparou no mundo todo. O que fazer? Investigar e licitar para comprar depois que as pessoas morrerem sem respirador ou comprar o que é emergencial e denunciar os fornecedores para que o Ministério Público investigue?
O Governo Federal deu a orientação correta: fazer o necessário para salvar vidas e enviar para a investigação o que for considerado suspeito. Feito isso, quem está sendo esculachado na imprensa? Os agentes públicos que fizeram as denúncias. É para isso que o Ministério Público ganha tanto quanto os defensores ou para ir atrás de quem fez errado?
Há dois casos emblemáticos. O do governador de Santa Catarina está entre um livro de Kafka e uma piada de português. O governo do Estado suspeitou de uma compra, denunciou à polícia em 48 horas, afastou temporariamente o secretário responsável e, em juízo, ofereceu um computador e um celular para o Ministério Público periciar. O MP não aceitou e, este mês, pediu uma busca e apreensão daquelas em rede nacional para aprender o tal celular e o computador. Imagine se você faz algo parecido no seu trabalho, o que acontece? No caso concreto, aplausos.
O do governador do Piauí é outra preciosidade, embora não tenha nada com o COVID, é na área de Educação. Houve busca e apreensão na casa dele, no governo, na casa do cunhado e, simbólico, no gabinete da mulher dele no Congresso Nacional. Só que a acusação é de irregularidade no governo anterior, quando ela foi Secretária da Educação. Quais são especificamente os documentos que esse pessoal guardaria até hoje e inclusive levaria para Brasília com objetivo de estocar num gabinete que tem outra função? Não estavam especificados no pedido.
Sinceramente, eu não tenho a menor ideia sobre a honestidade desses governadores e a pertinência das acusações. Só sei duas coisas:
– Eles são poderosos e têm como se defender.
– Os acusadores e o Judiciário precisam explicar por que autorizaram o gasto de uma fortuna de dinheiro público para buscas e apreensões midiáticas e provavelmente inúteis. Poderiam conseguir o mesmo material sem gastar dinheiro público e, no mundo digitalizado, há formas muito mais econômicas de obter as mesmas provas. Ainda que tenha justificativa, por que aplaudimos em vez de cobrar explicações?
Esta semana soubemos que a Lava Jato desistiu de apresentar denúncia contra as palestras de Lula. A carta do vitimismo e da conspiração é invariavelmente jogada na mesa e comprada por uma multidão. A versão de que eles sofrem pressões terríveis e houve um acordão político para poupar corruptos se espalha como um rastilho de pólvora. E eu pergunto: esse povo não tem estabilidade no cargo e salário nababesco garantido até a morte justamente para enfrentar essas pressões? Por que se exige do cidadão comum, que nem sonha com esse tipo de garantia, que sempre opte pelo certo e não se omita mas aceitamos desculpas de quem tem o dever de agir porque já foi pago para isso?
Não há desculpa. Ou se apresenta a denúncia ou cada um que, durante 4 anos, se dedicou a das entrevistas e fornecer documentos à imprensa falando que as palestrar eram irregulares explique por que mentiu. Não é possível que tenha se demorado 4 anos para perceber que faltavam documentos. Só há duas hipóteses:
– Ou há documentos e funcionários regiamente pagos não cumprem seu dever com o povo porque se agacham diante de poderosos;
– Ou não há documentos e funcionários públicos regiamente pagos passaram anos dando entrevista de manhã, de tarde e de noite sobre algo que nunca houve.
Por que nós, como mídia e sociedade simplesmente aceitamos que essas explicações não sejam dadas? Não é favor explicar isso, é dever.
Há muitos anos, na época em que eu acreditava que a livre manifestação de promotores, procuradores, defensores públicos e juízes concursados era liberdade de expressão, tomei uma invertida do Justice dos EUA Antonin Scalia por defender a tese. Ele ponderava que a vaidade inebria as pessoas e é necessário medir o impacto institucional das manifestações públicas, o que só pode ser feito por quem não se deslumbra e tem experiência política. Na época, eu discordei e depois paguei a língua.
Minha história de vida comprometeu minha análise e a observação me esfregou na cara algo que eu subestimava: o deslumbramento diante da exposição pública e da fama. Comecei a trabalhar em rádio aos 17 anos de idade, aos 19 anos era apresentadora da Rádio Jovem Pan, vejo exposição e atenção como trabalho e a demanda muita em ondas ao longo do tempo. É um trabalho como qualquer outro em que o aplauso é para a eficiência do produto, não para mim. Os mais experientes que eu, no entanto, têm olho clínico para perceber que novatos não entendem da mesma forma: sentem-se envaidecidos, reconhecidos publicamente, crêem ter algo de especial que motivou o público além de estar no lugar certo na hora certa. Vaidade é bicho que come o dono.
Cabe a nós, que sustentamos todo esse espetáculo a peso de ouro, decidir se vamos continuar pagando e aplaudindo trabalho capenga. Operações contra a corrupção são complexas e, quando envolvem poderosos, precisam ser meticulosas. Os resultados vêm daí e apenas daí. O apoio da sociedade é fundamental para o sucesso, mas para qual sucesso, o da operação contra corrupção ou o sucesso pessoal de quem a promoveu? Infelizmente, cada vez mais estamos na segunda alternativa.
Ou abrimos os olhos e deixamos de confundir barulho com eficiência ou seremos vítimas dessa máquina de moer gente. Se esculachar os outros sem prova virar vantagem no serviço público, a prática vai se disseminar cada vez mais, até que os pequenos tiranetes estejam espalhados por todo canto com plenos poderes. Vaidade e poder inebriam e é culpa nossa esquecer da natureza humana e dar a pessoas como nós o tratamento de heróis. Obviamente há excessos vindos de gente honesta e bem intencionada que luta contra anos de corrupção, o perigo é se tornarem a regra. De boa intenção o inferno está cheio e, se nossa intenção é sair dele, não há remédio senão combater o mal com o bem.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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