Militares ocupam 10 mil imóveis funcionais em Brasília: mordomia de general a cabo

Trinta anos após a venda de milhares de imóveis funcionais em Brasília, um grupo privilegiado de servidores mantém essa mordomia que nasceu com a cidade. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica mantêm 9.413 desses imóveis. O Ministério da Defesa conta ainda com uma reserva de 422 funcionais ocupados por militares e servidores civis. Outros 970 apartamentos são reservados para a Presidência da República, o Ministério das Relações Exteriores e mais 40 órgãos federais. A ocupação de 46 imóveis está sob sigilo. Tem diplomata no exterior com funcional em Brasília.

Não há transparência na ocupação dos imóveis dos comandos militares, mas a reserva do Ministério da Defesa mostra um pouco o perfil desses usuários. Nesse grupo há 16 oficiais generais – brigadeiros, almirantes e generais – 11 deles ocupantes de cargos de confiança na Defesa. O ministro da Secretaria de Governo, o general de exército Luiz Eduardo Ramos; e o porta-voz da Presidência, o general de divisão Otávio do Rêgo Barros, também ocupam imóveis funcionais. Outros oficiais generais foram contemplados com DAS, cargos de natureza especial ou representações militares.

O general de exército César Augusto Nerdi ocupa a chefia de Assuntos Estratégicos no Ministério da Defesa, com uma gratificação militar e salário de R$ 34 mil. O general de divisão Rollemberg Ferreira da Cunha, também com gratificação militar, tem renda de R$ 32 mil. Os dois contam com imóvel funcional.

Logo abaixo na hierarquia militar, estão 81 oficiais superiores – coronel, tenente-coronel, major, capitão de fragata e capitão de corveta. Há ainda 9 capitães, 23 tenentes, 148 sargentos e 17 cabos. Podem ocupar funcionais oficiais e praças de carreira das Forças Armadas com plano de carreira que tenha previsão de estabilidade. Também têm direito ao imóvel servidores civis que ocupem cargo do grupo de assessoramento superior (DAS) de nível 4, cargo de natureza especial e ministro de Estado. Os últimos dados disponíveis da Defesa são de março deste ano.

Os dados sobre funcionais publicados no Portal da Transparência da Presidência estão em duas listas, uma com o endereço do imóvel e outra com os dados dos seus ocupantes. Assim, não é possível identificar onde mora cada um deles. Mas dá para saber onde ficam os funcionais. Cinco deles estão na cidade satélite do Guará, 21 em Taguatinga e 26 no bairro Cruzeiro Novo – locais de moradias mais populares.

Os militares mais graduados ocupam imóveis nas quadras mais nobres da Asa Sul e na Asa Norte do Plano Piloto. São 149 nas Super Quadras Norte e 221 nas Super Quadras Sul – as mais antigas da cidade. O blog visitou cinco blocos da SQN 304 onde moram militares. São prédios modernos, arborizados, com projetos de paisagismo caprichados. Naqueles blocos, os aluguéis ficam em torno de R$ 4,5 mil.

Quem ocupa os imóveis da Presidência

A Presidência tem uma reserva de 75 apartamentos funcionais, 62 deles ocupados. Um deles é ocupado pelo ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner de Campos Rosário, que é auditor federal de controle. Além do salário que fica no teto constitucional – R$ 39,3 mil – após a aplicação do abate-teto, conta com um imóvel funcional. O irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, Arthur Wintraub, ex-assessor especial do presidente Jair Bolsonaro, também ocupava imóvel funcional. Deixou o cargo e a mordomia em 22 de setembro.

Outro auditor de controle da CGU, Cláudio Torquato da Silva, com salário de R$ 35 mil, também ocupa um funcional da Presidência. Ele ocupa um DAS-5 no Ministério da Agricultura, no cargo de assessor especial de controle externo. Mais um auditor da CGU, Allison Mazzuchelli Rodrigues, com salário de R$ 34 mil, tem um DAS-5 na Presidência da República, como secretário de Controle Interno. Ao todo, nove auditores de controle contam com cargos de confiança na Presidência e em Ministérios, todos com direito a imóvel funcional.

O 2º tenente do Exército Jaime Luiz Silva de Deus, chefe de gabinete substituto da Secretaria de Governo na Presidência, ocupante de um DAS-4, também foi contemplado com um funcional. O técnico de controle Wesley Alexandre Tavares ocupa um DAS-5 como chefe da Assessoria Especial de Controle Interno no Ministério da Cidadania.

Trinta e sete dos imóveis da Presidência estão na Asa Sul. Oito deles estão na SQS 302, uma das mais nobres e centrais. Cinco apartamentos estão no luxuoso bloco E, que está em reforma, com o pilotis cheio de material de construção. Um porteiro informou que estão trocando todo o granito. Ali também moram militares, acrescentou. Os últimos dados disponíveis sobre imóveis da Presidência são de julho deste ano.

Conselheiro no exterior, imóvel no Brasil

O conselheiro do Itamaraty Alexandre da Silva Barbedo encontra-se em missão em Riade, na Arábia Saudita. Recebe em dólares, como acontece com todo servidor que trabalha no exterior. Em reais, foram 81,5 mil em junho. Mas mantém o seu apartamento funcional no Brasil. O Itamaraty justificou ao blog a manutenção do imóvel: “O conselheiro encontra-se em missão transitória de longo prazo na Embaixada de Riade, mas permanece lotado no Brasil.  Por ter concessão de apartamento funcional em Brasília, não faz jus ao pagamento de residência funcional no posto”. O ministério não explicou o que seria uma missão “transitória de longo prazo”.

Dos 525 imóveis da reserva do Itamaraty, 458 estão ocupados – a maioria na Asa Sul. Cinquenta e três ficam nas quadras 300, as mais valorizadas do Plano Piloto. O ministro de 1ª classe Orlando Leite Ribeiro, ocupa o cargo de secretário de Comércio de Relações Exteriores no Ministério da Agricultura, com direito a um DAS-6 e renda de R$ 37,5 mil. Estava instalado num imóvel funcional do Itamaraty pelo menos até dezembro do ano passado. Essa é a data da última atualização das informações sobre funcionais do Ministério das Relações Exteriores.

Segundo a lista, um dos apartamentos é ocupado pelo ministro-diplomata Cláudio Brandelli, secretário-geral das Relações Exteriores, que ocupa um cargo de natureza especial, com salário de R$ 37,7 mil. A secretário de Gestão Administrativa, Cláudia Fonseca Buzzi, com um DAS-6 e renda de R$ 37,5 mil, também conta com imóvel da União. Luiz Fernando Abbott Galvão, diretor do Departamento de Nações Unidas, com um DAS-5 e salário de R$ 35,5 mil, ocupa um funcional.

A Secretaria do Patrimônio da União, que administra os demais ministérios, tem uma reserva total de 370 imóveis. Em 38 casos, não há a informação do órgão responsável. Em 16 imóveis, não é possível saber nem o nome do ocupante. Os dados estão sob sigilo.

O Ministério da Fazenda conta com uma reserva de 36 apartamentos. O antigo Planejamento, hoje anexado à Economia, tem mais 27. O Ministério da Cidadania conta com mais 20. As agências reguladoras de vários setores somam 63 imóveis funcionais. Os dados são de maio deste ano.

Funcionais nasceram com Brasília

Os apartamentos funcionais nasceram com a nova capital. Havia dois atrativos para levar servidores para Brasília – a “dobradinha” (salário dobrado) e os imóveis funcionais. Com o tempo, a cidade ficou mais atrativa e os funcionais não faziam mais sentido. No último ano do governo Sarney (1989), o ministro do Planejamento, João Batista de Abreu, decidiu recuperar todos os imóveis ocupados irregularmente. Chamou para essa tarefa um servidor dos Correios, Gil Castelo Branco, que foi nomeado superintendente de Construção de Administração Imobiliária (Sucad).

Após fazer 79 despejos, com o apoio do Ministério Público Federal, a Sucad enviou uma carta de despejo para Maria Isabel C. Afonso Ferreira, que ocupava um apartamento de forma irregular. Um servidor recebeu um telefonema do governador do Maranhão, Epitário Cafeteira, que avisou: “Vocês não sabem para quem mandaram essa carta. Esse ‘C” é de Cafeteira. A queixa chegou ao ministro, que abortou a operação. Gil pediu demissão. Hoje, é secretário-geral da Associação Contas Abertas, que fiscaliza gastos públicos.

No início do governo Fernando Collor, Gil foi chamado para ajudar na venda dos apartamentos funcionais. Havia 10.760 imóveis apenas para os servidores civis. A Sucad, com cerca de 600 funcionários, fazia reformas e até pequenos reparos nos imóveis. Ninguém trocava uma lâmpada. Foi elaborada uma lei que autorizava a União a vender os imóveis aos seus ocupantes legais, com financiamento da Caixa Econômica Federal. Saiu quase tudo. Quem conta essas histórias é o próprio Gil.

Militares também quiseram comprar, mas as Forças Armadas argumentaram que não poderiam vender por causa da transitoriedade e da rotatividade nos seus quadros. Alguns militares conseguiram comprar com decisões judiciais. Provaram que estavam no imóvel há mais de 10 anos. Outros órgãos, como a Presidência, o Itamaraty e vários ministérios solicitaram a reserva de apartamentos para atrair assessores de alto nível. Foram atendidos.

Lúcio Vaz

Lúcio Vaz é jornalista e cobre a política em Brasília há 30 anos, revelando mordomias, privilégios, supersalários, desvios de recursos públicos e negociatas nos três poderes. Com passagens por O Globo, Folha de S. Paulo e Correio Braziliense, ganhou os prêmios Embratel e Latinoamericano de Jornalismo Investigativo ao descobrir a Máfia dos Sanguessugas. Autor dos livros “A Ética da Malandragem – no submundo do Congresso” e “Sanguessugas do Brasil”. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.


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