Imagine. As cidades argentinas de Córdoba e Santa Fé deixam de ser localizadas na região central do país e passam a fazer parte do norte. Ushuaia, na Terra do Fogo, historicamente identificada com o extremo sul, passa a pertencer à região central. Ficção? Não, realidade. Pelo menos para o governo, congressistas, geógrafos e pesquisadores da Argentina de diversas áreas.
No último dia 4 de setembro, o Congresso Nacional argentino mudou a lei sobre espaços marítimos do país, ampliando o limite exterior da Plataforma Continental e insular. A nova lei foi em seguida promulgada pelo presidente Alberto Fernández.
Com a mudança, a Argentina ganha 1,7 milhão de quilômetros quadrados em plataforma continental (isso equivale, para se ter uma ideia, a quase seis vezes o território continental da Itália). Além de conferir aos argentinos direitos soberanos sobre as riquezas minerais dessa imensa região, a alteração também transforma a Argentina em um país bicontinental, com participação na América do Sul e na Antártica.
Uma das consequências imediatas da decisão do governo e do Congresso argentinos diz respeito à educação. O Ministério da Educação anunciou que já está concluindo os procedimentos para imprimir milhares de novos mapas para serem enviados às instituições de ensino. A nova carta geográfica, já divulgada pela internet, inclui os novos limites.
O governo argentino argumenta que a ampliação de sua plataforma está de acordo com autorização de 2016 da Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC), órgão integrado à Organização das Nações Unidas (ONU). Em março daquele ano, segundo assegura o Executivo argentino, a CLPC adotou recomendações sobre os novos limites da plataforma continental do país. O então governo de Mauricio Macri festejou a decisão, mas não encaminhou ao Congresso proposta de alteração da lei, o que foi feito agora por seu sucessor.
Com novo mapa, Argentina reivindica ser um país bicontinental.| Reprodução/Governo da Argentina
De acordo com o entendimento do governo argentino, a decisão da comissão da ONU garante ao país direitos de soberania sobre os recursos de uma vasta região no extremo sul do continente americano e se estende até o continente antártico. Sob as águas e gelo da área que está sendo incorporada pela Argentina existe uma imensa riqueza em petróleo, gás natural e minerais, além de uma rica fauna.
Logo após o anúncio do governo argentino, o vizinho Chile protestou. O chanceler chileno, Andrés Allamand, disse que a comissão da ONU não aceitou a reivindicação da Argentina. “Em relação à Antártica, as Nações Unidas não se pronunciaram a respeito da reclamação argentina porque não tem competência para isso”, contestou Allamand.
O chanceler do Chile acrescentou que seu país rechaça a demarcação de limites aprovada pelo Congresso argentino porque chilenos e britânicos reivindicam na ONU a mesma área. O novo mapa argentino inclui outras áreas em disputa, como as ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul, pivô de guerra com o Reino Unido. Os argentinos acusam os britânicos de colonialismo.
A briga da Argentina para ampliar seus limites não é de agora e passou por vários governos. Em 1990, o presidente Carlos Menem apresentou à ONU reivindicação sobre a plataforma continental do país além das 200 milhas marítimas (321,8 quilômetros).
Os países que reivindicam um pedaço da Antártica.| Reprodução/Fapesp
Desde 1997, a Comissão Nacional do Limite Exterior da Plataforma Continental, coordenada pela doutora em Direito Internacional Público, Frida Armas Pfirter, que foi funcionária do Tribunal Supremo, realizou dezenas de expedições científicas, sob duras condições meteorológicas. Oceanógrafos, geólogos, geofísicos, cartógrafos, especialistas em informação geográfica, advogados e especialistas em direito internacional participaram dos trabalhos em busca de elementos de comprovação da área reivindicada pela Argentina. Segundo os pesquisadores, foram 800 quilos de papel utilizados como documentação para atender os requisitos estabelecidos pela Convenção da ONU sobre o Direito do Mar.
Em 2016, o que foi classificado com uma decisão histórica, a CLPC se pronunciou favoravelmente às reivindicações do governo argentino sobre os novos limites da plataforma continental, com algumas exceções. A comissão da ONU responsável por receber e analisar propostas de Estados costeiros que pretendem estender suas plataformas continentais, entretanto, não se pronunciou sobre a reclamação da Argentina em relação às ilhas do Atlântico Sul que estão em disputa com o Reino Unido.
Como os britânicos também querem incorporar parte da mesma área da plataforma continental colocada no mapa pelos argentinos, a CLPC não reconheceu os espaços nem aos argentinos nem ao Reino Unido. A comissão também não se pronunciou sobre a disputa por áreas da Antártica entre Chile, Reino Unido e Argentina.
Apesar de o imbróglio dar mostra de não ter fim, o novo mapa argentino já está sendo distribuído. E logo estará nas salas de aula.
Célio Martins
Célio Martins é jornalista e escritor. Atuou em vários veículos de comunicação brasileiros, como Folha de S. Paulo, Folha de Londrina, O Estado do Paraná, Correio do Estado (MS), TV Iguaçu (SBT), Rede CNT e TV Campo Grande (SBT). Na Gazeta do Povo passou pelas editorias de Esportes, Curitiba, Paraná, Brasil, Mundo e foi editor da Primeira Página do jornal impresso. É autor e editor do blog Certas Palavras, com publicações nas áreas de política, meio ambiente, cultura e cotidiano. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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