É verdade. Para desviar a atenção dos muitos problemas de seu governo e, principalmente, do caso Fabrício Queiroz, Jair Bolsonaro adotou a estratégia de pautar o noticiário pelo absurdo. Quando algo não vai bem, ele dispara alguma indecência, alguma boçalidade, alguma delinquência, qualquer coisa que seja capaz de capturar a atenção da imprensa e das redes sociais. No mesmo dia em que se divulgava o tombo histórico de -9,7% do PIB no 2° trimestre, ele se pôs a falar sobre vacinação (retórica antivacina) contra o coronavírus.
Respondendo a uma apoiadora, uma daquelas de estilo lombrosiano, afirmou que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Sua frase foi parar também em uma postagem da Secretaria de Comunicação. Diante de um cenário tenebroso com quatro milhões de contaminados e mais de 120 mil mortos, era óbvio que isso despertaria reações. Dito e feito.
Mas poderia ser diferente? Como ignorar algo tão insidioso? Uma declaração dessas, partido da autoridade máxima do país e compartilhada pelos órgãos oficiais do governo, tem um poder de influência gigantesco e representa risco real para uma quantidade incalculável de pessoas. Brasileiros que tomam as palavras de Bolsonaro como verdade absoluta e podem achar que estar à mercê de uma doença altamente contagiosa é só uma questão opção.
As tais distrações de Bolsonaro não são benignas. O presidente brinca com a vida das pessoas. E isso precisa ser denunciado, mesmo que o resultado seja cair em sua “armadilha”. Afinal, estamos a tratar da natureza obscurantista deste governo . E é bom lembrar que ela não se limita ao campo da retórica.
O negacionismo da pandemia virou política de Estado. Das necessárias medidas de isolamento até os protocolos sanitários mais básicos, tudo foi devidamente boicotado pelo mandatário. Nem mesmo o uso da máscara passou incólume. Bolsonaro entrou na Justiça para não precisar usá-la em atos públicos e vetou trechos da lei que regulava sua utilização pela população. Mais do que isso: disse que sua eficácia era quase nula.
Quantos se insurgiram contra o uso de máscara? Quantos já estão se insurgindo contra a vacinação? E a título de que? Defender a liberdade individual, como assevera a Secom com indisfarçável orgulho? Nada poderia ser mais errado e grotesco. Estão transformando o princípio libertário da não-agressão em uma verdadeira ética sociopática, coisa que jamais foi.
Em seu livro “A Ética da Liberdade”, Murray Rothbard defende que “toda pessoa é a proprietária de seu próprio corpo físico assim como todos os recursos naturais que ela coloca em uso através de seu corpo antes que qualquer um o faça”. O autor, entretanto, arremata estabelecendo uma limitação fundamental: “esta propriedade implica o seu direito de empregar estes recursos como lhe convém até o ponto que isto afete a integridade física da propriedade de outro ou delimite o controle da propriedade de outro sem seu consentimento”.
Aplicado ao coronavírus, esse axioma poderia ser traduzido da seguinte forma: você não tem o direito de ser vetor de contaminação para as outras pessoas. Uma pandemia só pode ser controlada pela ação conjunta da sociedade. Em seu Twitter, o professor Thomas Conti assinala: “a obrigatoriedade da vacinação não vem para salvar você de si mesmo, mas para salvar os outros do risco que você causaria”.
Não há nada de antiliberal na imposição do uso de máscaras ou até mesmo da vacinação. O que estão é tentando destruir o senso de responsabilidade individual com base em deturpações premeditadas. Ao invés de buscar a conscientização de que todos devem se imunizar, Bolsonaro vocaliza o conspiracionismo psicótico que ulula no baixo meretrício intelectual e nos porões da internet. Como disse Reinaldo Azevedo na Band News, é claro que se trata de uma campanha contra a vacinação. Ou o que o presidente disse teria algum outro propósito se não exatamente esse?
Se há uma coisa de que o Brasil pode se orgulhar é de seu programa de imunização. Foi com ele que erradicamos a varíola, a poliomielite, o sarampo e a rubéola. E se algumas dessas doenças voltam a aparecer é porque os cuidados que as pessoas deveriam ter com elas caíram. E nada pior para esse cenário que uma nova revolta da vacina sendo capitaneada desde dentro do Palácio do Planalto.
Atualmente, duas vacinas estão sendo testadas no Brasil: a de Oxford e a Sinovac, esta última da China. Não são experimentos secretos e nebulosos. Os estudos que as embasam estão sendo publicados e discutidos com transparência pela comunidade científica global. Centros de pesquisa respeitáveis e com tradição nacional acompanham e participam desse processo. Dentre eles o centenário Instituto Butantã. Tudo o que for desenvolvido passará por controle rigoroso de segurança e efetividade, e terá de ser aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Celerados, tanto a soldo quanto voluntários, apostam na desinformação de maneira a semear um clima de medo contra os potenciais efeitos de uma medicação que ainda nem está pronta. Alguns apontam até para urdiduras globais de dominação social. Ao dizer o que disse, Bolsonaro se associa a esse lixo. Essa gente acha o que? Que o sujeito vacinado sairá cantando o hino da internacional socialista em russo? A doença moral que vigora no centro do poder é hoje a maior disseminadora da doença física que se alastra e mata pelas ruas do país.
Guilherme Macalossi
Guilherme Macalossi é jornalista, apresentador, redator e radialista. Apresenta o programa “Confronto”, na Rádio Sonora FM, e o programa “Cruzando as Conversas”, veiculado pela RDC TV, emissora de TV a cabo no Rio Grande do Sul. Trabalhou na agência Critério – Resultado em Opinião Pública, e já escreveu artigos para o site do Instituto Liberal. Na Gazeta Povo, produziu o programa “Imprensa Livre” e também mini documentários sobre temas variados publicados ao longo de 2019. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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