Lamento informá-lo, mas Supremas Cortes não protegem a Constituição, tampouco figuram necessariamente entre os instrumentos de defesa dos direitos fundamentais e da democracia. Se você tinha essa ilusão, detesto decepcioná-lo, mas é a realidade não é tão colorida.
Essa hipótese se tornou popular por um único motivo: ela é defendida e propagada por aqueles que são beneficiados pela atividade desses tribunais. E essas pessoas são muito, muito poderosas.
Quanto à ideia de que essas Cortes seriam mecanismos para impedir um regime tirânico, ela nos parece totalmente infundada e ingênua. Tribunais não têm exércitos. Suas sentenças são folhas de papel. Logo, toda sua autoridade depende do acatamento voluntário de suas decisões por aqueles que detém a força militar e os orçamentos. Ora, se outros poderes muito mais poderosos em termos de força bruta respeitam decisões isso não ocorre por imposição, mas pelo respeito prévio ao sistema vigente. Em suma: Cortes Supremas que conseguem atuar em prol de liberdades fundamentais são a consequência de um regime que já respeita o Estado de Direito, a democracia e os direitos fundamentais, não sua causa.
Sobre isso, bem pontuou Nelson Hungria, ex-ministro do STF, ao deparar com acusações da imprensa de que o órgão nada fizera para evitar a derrocada da democracia quando da ascensão dos governos militares. Disse ele:
Contra o fatalismo histórico dos pronunciamentos militares não vale o Poder Judiciário, assim como não vale o Poder Legislativo. Esta é que é a verdade, que não deve ser obscurecida por aqueles que parecem supor que o Supremo Tribunal Federal, ao invés de um arsenal de livros de direito, disponha de um arsenal de schrapnels e de torpedos.
Ademais, a história mostra não só que Supremas Cortes são incapazes de evitar regimes tirânicos como, pior ainda, que inúmeras vezes elas estiveram contra aquelas finalidades nobres que invocam para justificar sua existência: na Venezuela, a Suprema Corte foi essencial para a deterioração da democracia, permitindo a cassação infundada de direitos políticos de opositores e esvaziando as atribuições dos órgãos contrários à ideologia dos juízes do Tribunal; nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana permaneceu a maior parte da história do lado do escravismo (vide casos como “Prigg Vs. Pennsylvania”, “Jones Vs. Van Zandt”, e “Dred Scott Vs. Sandford”), derrubando legislações e atos que avançavam na pauta da igualdade; no Brasil, o STF legitimou regras do Programa Mais Médicos para profissionais vindos da ditadura cubana que foram vistas por órgãos internacionais como configuradoras de regime de escravidão contemporânea.
Em aula sobre o livro “How to Save Constitutional Democracies“, os autores da obra, Tom Ginsburg e Aziz Huq, ambos da Universidade de Chicago, apontam como Cortes cooptadas podem representar uma ameaça ao sistema democrático.
Mas, então, se boa parte do discurso romanceado que nos contaram era falso – ou, pelo menos simplista -, e a Suprema Corte não é (ao menos não somente, nem necessariamente) um órgão técnico-jurídico para proteger a Constituição, os direitos fundamentais, a democracia e o Estado de Direito… então, o que ela é de fato?
Supremas Cortes são, basicamente, organizações políticas a serviço dos grupos responsáveis pela nomeação de seus membros. Ponto. Isso já foi apontado há décadas pelo cientista político de Yale Robert Dahl. Uma das maiores autoridades sobre democracia e suas instituições no último século, Dahl descreveu esse fenômeno e encontrou boas provas de sua ocorrência em seu seminal artigo “Decision-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker”.
Supremas Cortes são órgãos políticos. Seus membros tendem, fundamentalmente, a votar em favor dos grupos partidários que os colocaram lá e evitar excessivos problemas com outras forças suficientemente poderosas para lhes dar o troco.
Sem dúvida, há alguma dose de exagero nessa descrição, excessivamente cética. Não é só isso que Cortes Constitucionais fazem. Segundo vasto estudo do cientista político de Princeton Keith Whittington, o panorama é bem mais complexo. Mas o quadro descrito acima é confirmado, em boa parte, pelos estudos empíricos. Uma considerável parcela do que as Cortes Supremas fazem, é o que foi descrito acima.
Aliás, isso responde por que líderes políticos criam Cortes Supremas e ampliam suas prerrogativas. Isso sempre pareceu contraditório a vários cientistas sociais. Por que grupos políticos restringiriam seu poder? Estudos posteriores explicaram o motivo. E ele não consiste em proteger direitos fundamentais, fortalecer a Constituição, o Estado de Direito ou a democracia. Ao menos, os dados não apontam essas como as principais razões, tampouco como as mais corriqueiras.
Na verdade, conforme estudos do Professor da Universidade de Chicago Tom Ginsburg, o processo de expansão da jurisdição constitucional é promovido por políticos visando a instituição de uma espécie de “seguro político”. Suas pesquisas empíricas apontam essa como a principal razão do fenômeno.
Um seguro é algo que você faz hoje, com algum custo, para ter um benefício maior (ou evitar um prejuízo superior) caso as coisas não saiam como planejado no futuro. O seguro político a que alude Ginsburg nesse caso ocorre do seguinte modo: os políticos criam, fortalecem ou expandem a Constituição e os poderes de Cortes Constitucionais hoje – ainda que isso possa implicar em algum nível de restrição –, porque caso percam eleições no futuro aquelas regras e os juízes por eles indicados poderão frear seus opositores vitoriosos e continuar influenciando a pauta política.
Isso já ocorreu de modo muito claro em alguns períodos da história americana: quando da eleição do Democrata-Republicano Thomas Jefferson nas eleições de 1800, ele deparou com um Judiciário claramente aparelhado pelo partido derrotado, o Federalista de John Adams; o mesmo ocorreu com o Republicano Abraham Lincoln, que travou uma cruzada antiescravista contra as resistências da Suprema Corte; também Franklin Roosevelt enfrentou, inicialmente, fortes embaraços judiciais para pôr em prática o New Deal.
O jurista canadense Ran Hirschl, cuja obra Towards Juristocracy (“Rumo à Juristocracia”) está para ser lançada em português, tem uma hipótese ainda mais sombria. Para ele o aumento do Poder das Cortes mediante expansão constitucional se dá pela ação de três grupos-chave: elites políticas que se veem ameaçadas e buscam isolar suas preferências do processo político, constitucionalizando-as; elites econômicas que buscam constitucionalizar os direitos que as beneficiam; e – por fim, a que mais nos interessa aqui –, elites judiciais e Supremas Cortes, que buscam aumentar a sua influência política e reputação internacional.
Para sustentar sua hipótese, ele cita o caso da África do Sul. Hirschl defende que, enquanto durou o apartheid, a minoria branca acreditava que podia confiar no processo majoritário, momento em que vigorava a Supremacia do Parlamento. Quando aquele regime já não era viável por meio daquele mecanismo político, a mesma minoria branca teria “se convertido” ao constitucionalismo, usando-o como instrumento para preservar privilégios.
Qualquer que seja a hipótese, o quadro descrito por Ginsburg acima parece descrever de modo muito oportuno o que ocorre hoje no Brasil. O próprio ministro da Suprema Corte Marco Aurélio reconheceu que o STF se tornou um tribunal de boicote ao Presidente eleito Jair Bolsonaro. Disse ele: “o STF está sendo utilizado pelos partidos de oposição para fustigar o governo. Isso não é sadio. Não sei qual será o limite”.
De fato, exatamente como descreveu Ginsburg, um tribunal apontado majoritariamente por grupos de esquerda ou extrema-esquerda, vem executando o seguro político para o qual foi constituído: assegurar que, em caso de derrota da esquerda nas urnas, ela pudesse continuar governando sem voto por meio de decisões judiciais.
Muitos observadores atentos veem no STF não um tribunal de controle jurídico, mas uma militância de boicote político.
Os indícios desse fenômeno são inúmeros: decisões que esvaziam atribuições da União e do Presidente, perseguição a apoiadores, críticas públicas inoportunas e de caráter político-ideológico, duplo padrão de tratamento etc.
Particularmente, encerramos externando nossa enorme preocupação com esses fatos. A postura belicosa e partidariamente militante da Corte, sem dúvida, alguma desgasta a institucionalidade perante a opinião pública. A população de modo geral passa a ver as instituições não como balizas legítimas, mas entraves desproporcionais e irrazoáveis. Elas já não figurariam como limites para que governantes não abusem, mas como armadilhas para que não governem. Ademais, passam a desacreditar da democracia: de que serve fazer um esforço enorme para eleger alguém, se ele não poderá fazer nada que o grupo derrotado não permita por meio de seus indicados no STF? Ainda, isso tende a gerar o desejo de dar o troco, deixando o Brasil refém de um círculo vicioso.
Como isso poderia ser corrigido? A resposta não é fácil. Não existe “bala de prata”. A democracia não é um dado nem um construído, mas um construindo. Regimes democráticos não são como um prédio que após construído, você pode simplesmente morar dentro. Eles se assemelham mais a um corpo saudável, que precisa de alimentação adequada permanente e exercícios constantes. Ou seja, têm de ser mantidos por cada geração. De fato, democracias são arranjos complexos que envolvem instituições formais e traços culturais favoráveis. Por isso, deixaremos essa resposta para um (ou mais) texto(s) futuro(s).
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