“Chifre não é vacina”: onde está o Chico Buarque da pandemia?

Clipe da música “Já Peguei Coisa Pior”, de Tierry: o que mais me intriga é o microscópio nesse quarto claustrofóbico.| Foto: Reprodução/ YouTube

Machado de Assis era gênio e tal. Mas também era meio deslumbrado com a vida intelectual. “Essa é a glória que fica, eleva, honra e consola”, escreveu ele, provavelmente depois de um ataque de modéstia, sobre o próprio ofício. Millôr Fernandes gostava de rir dessa frase. Dizia que, se Machado de Assis fosse mesmo gênio, teria escrito “fica, consola, honra e eleva”.

Me lembrei da frase de Machado de Assis que enfeita a entrada da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, porque achei que ela caberia bem num texto sobre o deslumbramento estéril dos nossos artistas nesta pandemia. Cinco meses, 100 mil mortos e uma tragédia humanitária mais tarde, onde estão as músicas, as obras dramatúrgicas, os poemas, os quadros que retratam o momento pelo qual passamos?

E, no entanto, os artistas estão no noticiário o tempo todo. Sempre por motivos extrínsecos (palavra tão chique que tenho certeza de que usei errado) ao seu ofício. Basta pensar na cantora-do-povão Marília Mendonça, envolvida em picuinha progressista. Ou no ator Fábio Porchat se dizendo um “racista em desconstrução”. Ou ainda em YouTubers, rappers e grafiteiros – embora eu, pessoalmente, seja elitista demais para considerar esse tipo de coisa arte.

Até mesmo artistas da Velha Guarda e da cultura “semialta”, sempre que viram notícia, é por algo que não tem nada a ver com seu trabalho. Chico Buarque assinou pedido de impeachment. Fernanda Montenegro diz temer o fascismo. Caetano Veloso estacionou seu carro no Leblon.

E, quando se destacam por suas realizações artísticas, os mais velhos e supostamente talentosos mostram que a fonte criativa secou. Eles são obrigados a usar e abusar das autorreferências, recorrendo aos clássicos que fizeram sua fama. O maior exemplo disso é o sucesso da live recente de Caetano Veloso, na qual ele cantou músicas que aprendi a admirar em intermináveis aulas de semiótica nos corredores da Universidade Federal do Paraná.

Nada contra. Mas a sensação é de que (i) o artista não está nem aí para o público (talvez porque independa financeiramente dele), (ii) o artista está completamente alheio à realidade que antigamente lhe servia de inspiração e (iii) o artista hoje é, mais do que nunca, uma personalidade que se vende, e não um realizador.

“Já Peguei Coisa Pior”

Inacreditável, por exemplo, não termos uma grande música sobre a pandemia de coronavírus – uma tragédia que, até aqui, afetou a vida em 98% dos municípios brasileiros. Um drama que vai muito além da questão sanitária ou política, que custou a vida de mais de 100 mil pessoas até aqui, que fez todo mundo repensar um pouquinho a vida, que mudou até mesmo como as pessoas se relacionam romanticamente.

Aliás, a única música que ouvi sobre o tema é uma baladinha sertaneja de um tal de Tierry. Intitulada “Já Peguei Coisa Pior”, a música começa com o cantor dizendo que “chifre não é vacina”. Em seguida, somos apresentados àquela melodia que parece a mesma de sempre e à letra que fala coisas como “Com soro de 51 na veia/ Com injeção de conhaque/ De noite, de manhã, de tarde/ Me curei da judiação que ela me fez/ O coronavírus nunca me assustou/ O coronavírus nunca me assustou”.

Não me consta que Tierry tenha feito sucesso ou que sua criação tenha marcado o imaginário popular. Ainda.

E eu, que me nego o olhar nostálgico, fico olhando para a janela e pensando no que os “gênios” do passado teriam produzido sobre a pandemia. Uma música só com rimas proparoxítonas de Chico Buarque evocando a dor feminina diante do homem entubado. Um roquezinho anárquico de Raul Seixas falando de máscaras, discos-voadores e conspirações chinesas. Um poema de Drummond sobre nobre esforço do entregador do iFood que sobe uma ladeira para entregar uma marmita a um sociólogo em quarentena.

Mais (só porque sou masoquista): uma instalação de Cildo Meireles com máscaras, caixas de hidroxicloroquina e a obviedade toda. Uma novela de Dias Gomes com Antônio Abujamra no papel de um cientista à la doutor Didier Raoult. Um personagem de Chico Anísio inspirado em Átila Iamarino cujo bordão é arregalar os olhos, olhar para a câmera e dizer “Um milhão de mortos!”.

E, claro, Roberto Carlos interpretando “Amor na Fila do Pão, a 1,5m de Distância”, composta com o amigo Erasmo e carinhosamente apelida nas ruas de Melô do Corona.

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Paulo Polzonoff Jr.

Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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