A agenda de ajuste fiscal e reformas proposta pelo liberal ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a dividir a atenção com a assistência social, impulsionada pela boa atuação do governo nas medidas emergenciais adotadas para conter os efeitos da pandemia da Covid-19. Como de costume, a meta é ousada: o ministro quer apresentar o projeto do Renda Brasil, que unifica programas de transferência de renda, até agosto e tentar aprová-lo ainda neste ano. Mas há riscos em atropelar a discussão, ainda mais quando está em jogo repaginar o Bolsa Família.
O programa de transferência de renda, que já surgiu da junção de outras políticas públicas, não é intocável. Mas tem méritos que o tornaram referência no mundo: é bem focalizado, custa pouco para o governo (em média, 0,5% do PIB) e traz um retorno para economia maior que o de outros programas de assistência social, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), e até mesmo que a Previdência.
Na hora de criar o Renda Brasil – que deve reunir Bolsa Família, abono salarial, salário-família, seguro-defeso e Farmácia Popular – é essencial manter as virtudes e concentrar os esforços em melhorias. A discussão rápida, e em ano eleitoral, traz riscos, inclusive por ser conduzida por uma equipe que não tem expertise na área assistencial. Ainda mais considerando o cenário pós-covid-19, em que é difícil estimar quantas pessoas vão continuar precisando de algum tipo de ajuda do governo para sobreviver.
Pelo menos 65,4 milhões de pessoas foram consideradas elegíveis para receber o auxílio emergencial criado para minimizar um pouco do impacto da pandemia. A estimativa do Ministério da Cidadania é de que esse benefício chegue, direta ou indiretamente, a 125,4 milhões de brasileiros – mais de metade da população. Para comparação, a média de atendimento do Bolsa Família era de 14,2 milhões de famílias.
Revisar Bolsa Família é necessário
Para o professor da EAESP-FGV Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da instituição, a pandemia de Covid-19 e o pagamento do auxílio emergencial por parte do governo federal evidenciaram a insuficiência do Bolsa Família. Sozinho, o programa seria incapaz de incorporar todas as pessoas que perderam a renda e precisavam de socorro do estado. “A ideia de reformular o Bolsa Família é absolutamente pertinente. O programa tem mais méritos do que defeitos, mas esse episódio da pandemia revelou sua provável insuficiência”, avalia.
O Bolsa Família teve orçamento aprovado de R$ 30 bilhões para 2020, considerando as transferências de renda – além desse montante, há outros valores para suprir a parte “operacional” do programa. Essa despesa com o benefício vem se mantendo no mesmo patamar nominal ao longo dos últimos anos. Para 2020, esse valor seria insuficiente até mesmo para bancar a quantidade de famílias que já precisavam do benefício – maior do que o estimado pelo governo quando propôs a PLOA 2020 – e também não cobriria o 13.º pagamento.
Em março, técnicos do Ipea já haviam mapeado pontos de atenção para o Bolsa Família fazer frente à pandemia com efetividade. Na época, antes de o governo adotar qualquer medida, eles já sinalizaram para a necessidade de acabar com a fila de espera do programa, reajustar os pagamentos e as linhas de elegibilidade, e criar um benefício temporário.
Essas ações representariam custos extras, porém necessários. “Caso a crise se estenda por um prazo maior do que o inicialmente previsto e/ou a recuperação econômica após a pandemia seja lenta, recomendamos fortemente que o benefício extraordinário seja prorrogado pelo tempo necessário para a superação da crise social”, alertavam.
Programa muito complexo pode travar processo
A criação do Renda Brasil, que desativa outros programas, para substituir o Bolsa Família em pouco tempo pode criar mais complexidades nesse processo e até travá-lo. A avaliação do diretor da FGV Social, Marcelo Neri, é de que sempre é possível piorar um bom programa como o Bolsa Família.
Em termos de orçamento, o reforço aos R$ 30 bilhões anuais do Bolsa Família serviria para quase dobrar seu valor. Os outros programas representariam um reforço de R$ 27 bilhões, aproximadamente – abono salarial (R$ 20 bilhões), salário-família (R$ 3 bilhões), seguro-defeso (R$ 2 bilhões) e farmácia popular (R$ 2 bilhões).
Para Neri, uma questão é fundamental na reformulação: manter o benefício variável. O Bolsa Família possui um benefício básico e a ele se somam novos valores para casos específicos daquela família, como presença de gestantes ou lactantes e quantidade de filhos em idade escolar – com diferenças nos repasses a depender da idade da criança. Ainda há um valor específico, calculado sob medida para famílias em situação de extrema pobreza.
“Não estão claros todos os elementos do Renda Brasil, mas há intenção de um beneficio fixo. O benefício básico do Bolsa Família dá mais para quem tem menos. Se tornar fixo, você perde focalização e vai dobrar o custo de diminuição da pobreza só nessa medida”, aponta.
Por outro lado, Neri elogia a possibilidade de se criar prêmios por performance escolar. Ele lembra que a cidade do Rio de Janeiro fez essa experiência com o Família Carioca e tem sido bem-sucedida.
Pressa e orçamento são sinais de alerta para discussão
A rapidez com que o governo quer “resolver” essa questão é sinal de alerta. Lauro Gonzalez, da FGV, defende que é preciso discutir a capacidade que o governo terá para fazer isso. “Se trata de um assunto sobre o qual não havia prioridade. A agenda da equipe do Paulo Guedes – e a expectativa sobre essa agenda – girava em torno de reformas, liberalização da economia. Essa era a pauta e, mesmo nesta pauta, os avanços foram muito tímidos. Retrocedendo ao primeiro ano do governo, a única reforma aprovada foi a da Previdência”, observa.
Marcelo Neri, da FGV Social, concorda. Ele cita o pouco conhecimento em política social pela equipe de Paulo Guedes, que comanda o processo de criação do Renda Brasil, e também as dificuldades na interlocução com o Congresso, que sinaliza até a possibilidade de discutir um programa de renda básica permanente. “Tem obstáculos no meio do caminho e tentar transpô-los de maneira apressada pode acabar incorrendo em mais custos”, pondera.
Neri dá como exemplo a criação do 13º do Bolsa Família, no ano passado, que não foi amplamente discutida e precisou de um remanejamento de orçamento para ser efetivada. O pagamento do benefício extra, na avaliação de Neri, não compensou a fila de espera do programa, que também reflete a escassez de recursos para pagamento.
A discussão de uma mudança tão profunda no programa de transferência de renda em ano eleitoral também é vista com ressalvas pelo pesquisador. Historicamente, esse tipo de ação de combate à pobreza é usada em consonância com o calendário eleitoral.
Neste caso, se encaixa, de certa forma, a derrubada do veto ao BPC imposta pelo Congresso ao governo de Jair Bolsonaro. Com isso, os parlamentares aumentaram de 1/4 para meio salário mínimo o limite de renda familiar per capita para idosos e pessoas com deficiência terem acesso ao benefício. O BPC custa, em média, R$ 60 bilhões ao ano – o dobro do Bolsa Família – e atinge um público mais reduzido porque paga um benefício maior, no valor de um salário mínimo.
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