Ideia defendida por Maia não encontra resistência no Exército; apoiadas por Moro, 70 medidas contra corrupção previa quarentena de quatro anos
Caro leitor,
Em 13 de maio de 1958, o exército francês derrubou a IV República e, sob a ameaça de saltar sobre Paris, fez Charles De Gaulle voltar à presidência. O velho general sabia o tamanho da encrenca que a indisciplina dos militares que se comportavam como partido político representava para a Nação. Em 19 de janeiro de 1960, destituiu o general Jacques Massu – um dos golpistas de 1958 – de seu comando, levando à reação dos defensores da guerra revolucionária na Argélia.
Em reação às barricadas erguidas em Argel, De Gaulle apareceu fardado na TV, no dia 29 de janeiro: “Dirijo-me ao Exército que, graças aos seus esforços, está obtendo a vitória na Argélia, mas que alguns de seus elementos foram tentados a acreditar que essa guerra era a sua guerra, não aquela da França, que teriam direito a uma política que não seria a da França. Eu vos digo, soldados: vossa missão não comporta equívoco ou interpretação”. A sorte do partido militar estava selada. O general degolou a turma. Mais tarde, mandaria passar pelas armas o tenente-coronel Jean-Marie Bastien-Thiry, que tentara matá-lo no atentado de Petit-Clamart.
São inúmeros os exemplos de tragédias causadas quando se derruba a parede entre a caserna e a política. A discussão sobre o muro que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, pretende reerguer para alterar a Constituição e obrigar a passagem para a reserva dos militares que vão ocupar cargos civis no governo seria um primeiro passo para tranquilizar o País. A ideia da passagem para reserva é quase consenso, ainda que velado, entre militares. A Emenda Pazuello desperta atenção porque é cada vez mais difícil de engolir o general intendente no Ministério da Saúde. A questão não é se o cargo deve ou não ser ocupado por um técnico, mas a natureza política da função. Temos aqui um militar da ativa fazendo política, o que contaminaria os quartéis pelo exemplo.
Pois política foi a distribuição de bilhões em recursos que foram carimbados pelos senadores e deputados para seus Estados, assim como a decisão de inundar o País de cloroquina. Se quisesse indicar uma forma segura de enfrentar a doença em vez de aconselhar um “tratamento precoce do mal” – sinônimo no bolsonarismo da cloroquina –, Pazuello devia ler o Clinical & Medical Investigations Journal. Ali está o estudo assinado pelos médicos Giuseppe Remuzzi, Norberto Perico e Fredy Suter que relatam medicamentos úteis para tratar pacientes nos estágios iniciais da covid-19, ainda em casa, na Itália, bem como nos casos em que o mal se agrava.
Os pesquisadores do Istituto Mario Negri de farmacologia de Milão mostram que pacientes no começo da doença devem receber anti-inflamatórios não esteroides. Se as dores persistirem, corticoides podem ser acrescidos. Recomendam ainda anticoagulantes para evitar tromboses, antibióticos para infecções oportunistas e terapia com oxigênio. E, como pesquisadores no Brasil, concluem: “Dado o alcance limitado de evidências sobre a eficácia e as muitas advertências sobre efeitos colaterais e risco de morte para pacientes, não recomendamos hidroxicloroquina sozinha ou em combinação com a azitromicina para tratar pacientes não-hospitalizados“.
É preciso lembrar que o estudo é de maio. Em 27 de março, a Itália havia registrado seu recorde de mortes em um dia: 969. Havia 9 mil mortos no País. No domingo, dia 9, ela registrou 2 mortes, ainda que tenha acumulado 35 mil mortes na lenta queda. A redução da epidemia na Itália coincide com a construção da tragédia brasileira de 100 mil mortes. Obra do mau exemplo e do descaso de Bolsonaro, que designou Pazuello para a Saúde após demitir dois médicos que se recusaram a agir como curandeiros do presidente.
Há 86 dias interino no cargo, Pazuello demonstra não querer passar para a reserva, tornando-se o símbolo da banana dada por este governo – um hábito do chefe – aos que se horrorizam com essa confusão entre o quartel e a política. Generais ouvidos pela coluna acreditam que a “saia justa” – expressão usada por um deles – seria resolvida com a Emenda Pazuello. Não haveria oposição à ideia de Maia, pois a medida teria pouco efeito prático. Primeiro porque afirmam que não haverá um novo general da ativa como ministro neste governo. Mesmo Pazuello só permanece no cargo em razão das declarações de Gilmar Mendes – o ministro do STF disse que o Exército corria o risco de se associar a um genocídio pela forma como o governo trata a covid-19 entre os povos indígenas.
Ou seja, Pazuello só não saiu antes para que não se desse a impressão de que a substituição ocorrera em razão da declaração do ministro do STF. Ainda mais depois dos conflitos do governo com a Corte. Um conflito que só não teve consequências imprevisíveis por causa da atuação do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Pois teria sido ele quem pôs água na fervura no dia em que Jair Bolsonaro esteve mais próximo da ruptura com a Corte, em 22 de maio, quando o ministro Celso de Mello, do STF, consultou o procurador-geral Augusto Aras sobre a apreensão ou não do celular de Bolsonaro.
Na semana passada, a revista Piauí, contou que o presidente disse em reunião que ia “intervir” e prender os ministros do STF. Embora a maioria dos generais consultados pela coluna tenha afirmado desconhecer os detalhes da reunião de Bolsonaro, um deles classificou a fala do presidente apenas como desabafo e outro confirmou parcialmente o relato. De acordo com ele, “o cabo e o soldado” estiveram muito próximos de serem enviados à Corte.
A gravidade da história – desmentida por generais do Planalto – tem ao menos uma função pedagógica. Ele mostra os riscos para a democracia da tentação de se resolver pela força aquilo que a incompetência, o autoritarismo, a desonestidade e o radicalismo tornam impossível de se alcançar na República: o consenso em nome do bem comum e da paz social. Maia não devia precisar de uma PEC para afastar os militares da política. Bastaria que o Estatuto dos Militares fosse aplicado.
O problema não se resume à passagem para a reserva dos que desejam entrar para a política: deve o militar manter a neutralidade, o apartidarismo e a imparcialidade no exercício dessa função de Estado. Por isso, houve quem lembrou as 70 propostas contra a corrupção, que receberam o apoio de Sérgio Moro e de dezenas de entidades preocupadas com a transparência e o combate à essa praga. Ali está a proposta de quarentena de 4 anos para que magistrados e membros do Ministério Público possam disputar eleições ou migrar para o Executivo. É o tempo de um mandato. Evita-se assim que a miragem de um cargo afete manifestações e sentenças, pois corrupção é receber qualquer tipo de vantagem, não apenas dinheiro.
Às carreiras jurídicas, devem-se unir as militares e policiais. Em nome dos princípios que regem essas funções, não se deveria permitir que um partido lhes acenasse com boquinhas no governo. É necessário impedir, em meio à pandemia, a politização da toga e a das armas antes que elas se tornem mais uma tragédia no Brasil. E nem é preciso lembrar, como fez o ex-presidente Fernando Henrique, que não temos um De Gaulle para combatê-la.
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