Urubus de pandemia: eles querem ser Moro, mas sem brigar com o establishment

A pandemia trouxe ao Brasil as versões “mínimo esforço” da Lava Jato e do impeachment

O Brasil tem a cultura do salvador da pátria e, por isso, qualquer análise sobre a Operação Lava Jato precisa ser feita de forma infantilizada. Ou são nossos grandes heróis ou são grandes vilões que fizeram coisas horrorosas porque odeiam o Lula e o PT. São humanos e tudo o que é humano tem falhas, simples assim.

Com todas as falhas que a condição humana impõe a nós todos e, consequentemente, à Lava Jato, houve uma mudança de paradigma no Brasil: agora, cadeia vale também para criminoso rico e poderoso.

Não superamos a impunidade da casta revestida de dinheiro, prestígio e poder. A história do desembargador que, após 37 anos de sucessivos e graves abusos de poder, ainda continua na função apesar da exposição de um comportamento aberrante no embate com um guarda municipal é emblemática e não é fato isolado. Mudar a cultura é muito mais demorado que mudar uma lei ou conseguir quebrar um tabu, como fez a Lava Jato. Foi o começo.

Ainda que tenham falhas humanas e técnicas, mesmo que essas falhas sejam expostas e punidas, Sergio Moro e Deltan Dallagnol conseguiram junto à população brasileira um legado que não será tirado. São os rostos mais famosos da primeira ação institucional da Justiça brasileira que cobrou ricos e poderosos quase até com o mesmo rigor que o cidadão comum é cobrado.

Para a elite intelectual, econômica e cultural talvez não faça muita diferença. São pessoas que jamais foram cobradas com rigor pelo Estado e, mesmo assim, sempre tiveram como vocalizar suas insatisfações. Para a maioria da população, lava a alma essa sensação de que a lei pode valer para todos um dia. É daí que vem o legado que tornou famosos Moro e Deltan, não da avaliação sobre a correção técnica de suas condutas.

Tanto o ex-juiz quanto o procurador inspiram muitos colegas. Há os que se motivem a fazer a lei valer para todos. Infelizmente, há também os que resolveram ficar famosos fazendo operações espetaculares para a imprensa. E eles enchem os olhos de parlamentares, que gostaram muito da ideia de impeachment e transformaram em moda nacional. No meio da pandemia, temos uma casta que não olha além do próprio umbigo.

Temos agora um debate acalorado sobre a tal “quarentena” para que juízes possam se candidatar a cargos políticos, um casuísmo evidente para evitar uma carreira política de Sergio Moro. Mas é divertido ver as reações desesperadas de outros operadores do Direito que ganham fortunas dos cofres públicos para se dedicar mais a dar entrevista que a trabalhar em processo. Não tem santo nessa história.

Bem no meio da pandemia, temos um surto de operações fantásticas de busca e apreensão e prisões temporárias. Prefeituras e governos estaduais já explicaram a situação ao Ministério da Saúde e a orientação do secretário Luiz Otávio Duarte, corretíssima, foi esculachada na imprensa. Esse fato tem uma relação íntima com o aumento de operações midiáticas e do apetite por poder daqueles que hoje trilham carreiras jurídicas.

Com a pandemia, o mercado dos insumos hospitalares enlouqueceu devido ao desequilíbrio entre oferta e demanda. E, como em todas as situações que envolvem seres humanos, aparece a ganância. Há empresas fornecedoras que jogaram nas alturas preços de insumos necessários para salvar pessoas. A orientação do Ministério da Saúde, correta, é de comprar assim mesmo e mandar investigar o fornecedor: não há nada mais importante que a vida. Primeiro salvamos quem corre risco e depois cobramos quem se aproveitou da emergência.

Na prática, os funcionários públicos que tem tomado essa atitude, que é correta e no melhor interesse dos cidadãos, relataram publicamente na Câmara dos Deputados que têm sido ameaçados até de prisão pelo Ministério Público. Para o Ministério da Saúde, o Ministério Público deveria é investigar esses fornecedores. O que tem ocorrido é a investigação de apenas um lado da transação comercial, o do agente público. Não creio que seja apenas porque é mais fácil e aparece na mídia com o nome de quem investigou, deve ser por alguma razão que eu não tenho capacidade para compreender.

Por outro lado, o sucesso midiático dessas operações, que não requerem o mesmo esforço de trabalho da Lava Jato nem deram resultado prático, acendem a luz da vaidade de parlamentares de todo o Brasil. Por que não tentar uma versão mínimo esforço do impeachment? Estão tentando.

Durante uma pandemia sem precedentes na história e em pleno ano eleitoral virou moda pedir impeachment de governador. Claro que é por desvios mesmo e que os deputados estaduais, probos e imaculados, examinaram as contas com lupa. Jamais seria interesse eleitoral e arreglo. Chegamos ao ponto de ter pedido de impeachment do prefeito de Porto Alegre, candidato à reeleição, no meio do processo eleitoral. Evidente que é por questão técnica, os vereadores jamais se aproveitariam politicamente disso.

Um povo marcado pela chaga da corrupção tende a apoiar cegamente quem luta para combatê-la e, infelizmente, cai no erro de apoiar cegamente lobos em pele de cordeiro. Na casta dos privilegiados do funcionalismo público tem muita gente que aprendeu a usar a máquina estatal para se promover, com conivência da imprensa.

No meio da pandemia, com risco de desabastecimento de insumos e os preços totalmente desregulados no mercado internacional, é simplesmente impossível alguém ter uma conclusão definitiva sobre a licitude de uma compra pública. Legislativo e Ministério Público poderiam ajudar muito com apoio técnico para desenrolar este imbroglio e, em parceria, atender com mais qualidade e rapidez a população. Aliás, é função deles. Não creio que estejam fazendo o oposto porque não dá mídia nem promove pessoas, deve ser por falta de costume.

Temos cidades vivendo situações dramáticas em que faltam anestésicos usados para intubar doentes na UTI. O que explica exigir que os funcionários responsáveis por viabilizar essas compras gastem o expediente respondendo, neste momento de pandemia, questionamentos sobre outras compras?

Não creio que servidores que iniciam a carreira com salário de R$ 30 mil, 2 meses de férias e penduricalhos sejam ignorantes. Nenhum deles realmente acredita que é possível, neste momento, apurar com segurança a licitude de uma compra de insumo hospitalar acima do preço. Nenhum deles realmente pode acreditar que seja razoável gastar o expediente dos funcionários responsáveis por abastecimento de insumos hospitalares com outra coisa que não atender os hospitais. Por que fazem? Porque podem e, pior ainda, são aplaudidos.

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

Gazeta do Povo.

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