Documentário mostra como Putin usou o terror para montar seu projeto de poder

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, faz pronunciamento à nação sobre pandemia de coronavírus, 25 de março de 2020| Foto: Kirill KUDRYAVTSEV / AFP

Faltavam poucas horas para a virada do século, em 31 de dezembro de 1999, quando um anúncio surpreendeu os russos e todo o mundo. Boris Yeltsin, primeiro presidente da Rússia após o colapso da União Soviética, renunciava ao cargo quase um ano antes do fim do mandato. Em seu lugar, assumia interinamente um ex-agente da KGB (o serviço secreto russo) que apenas alguns meses antes fora alçado ao cargo de primeiro-ministro. Talvez nem ele e a população russa imaginavam que começaria ali uma era de poder que já completou duas décadas e caminha para se tornar ainda mais longeva.

Aos 47 anos de idade, Vladimir Vladimirovitch Putin tomou posse como presidente interino em 1º de janeiro de 2000, sob forte expectativa da população, que esperava uma mudança de rumo no comando do país após o desgaste de seu antecessor, causado principalmente pela guerra da Chechênia. Prometendo reconstruir o país, governar com mão de ferro e manter a estabilidade, Putin foi eleito meses depois já no primeiro turno. E permanece no Kremlin até hoje, com altos índices de popularidade interna, mas também marcado por acusações de conduta antidemocrática, forte repressão aos opositores e controle da mídia.

Indícios de que a conduta de Putin no poder estaria distante do discurso unificador já estavam presentes na primeira campanha eleitoral, que o levou à presidência pela primeira vez 20 anos atrás. Foi o que percebeu o cineasta ucraniano Vitaly Mansky ao revisitar o material que gravou em 2000, quando foi contratado por Putin para realizar um filme promocional para a campanha. A revisão dessa produção, décadas depois, deu origem ao documentário “As Testemunhas de Putin”, lançado em 2018, mas que somente agora foi disponibilizado ao público brasileiro, por meio do Canal Brasil.

Nascido na Ucrânia quando o país ainda era parte da extinta União Soviética, Vitaly Mansky produzia em 1999 um filme sobre o ex-presidente Mikhail Gorbachev para a televisão estatal russa. Sob o argumento de dar espaço também ao então presidente, foi encomendado a ele outro filme, este sobre Boris Yelstin. Durante as filmagens, a figura de Putin começou a aparecer e o cineasta resolveu também contar um pouco de sua história. Então candidato, o hoje presidente gostou do que viu e convidou Mansky para acompanhar sua rotina de perto e produzir um filme que seria usado para impulsionar a campanha presidencial.

Com a câmera sempre a tiracolo, Mansky teve acesso a um universo ao qual poucos adentraram. Nos corredores e gabinetes do Kremlin, ele acompanhou o presidente em reuniões de trabalho e encontros com líderes. Na intimidade, conversou com Putin dentro da limusine oficial enquanto rodava pelas ruas de Moscou e até foi convidado a nadar com ele em uma piscina. A narrativa leva o espectador a acompanhar todo o processo eleitoral de forma linear, sem truques de edição, uma estratégia eficaz para entender o caminho que levou o líder russo ao poder.

O medo como estratégia

As primeiras cenas de “As Testemunhas de Putin“ são da própria família do cineasta, reunida em casa e acompanhando na televisão o pronunciamento de Yeltsin no qual ele anunciou sua renúncia. Em contraposição às imagens de parte da população comemorando nas ruas, a esposa de Mansky, Natalya, diz: “nossa utopia se foi de repente, o mundo está abalado, eles terão medo de nós”. Não fica claro o porquê desse medo, mas aos poucos o filme revela um pouco do caráter premonitório dessa afirmação.

A renúncia de Yeltsin e a consequente ascensão de Putin ao poder acontecem em um cenário de insegurança para a população russa. Em setembro de 1999, uma série de explosões atingiu edifícios em três cidades russas, matando mais de 300 pessoas, ferindo outras mil e espalhando medo no país. Os atentados foram o estopim para o conflito separatista na Chechênia, reprimido severamente pelo governo russo, sob o comando do ainda primeiro-ministro Putin.

Existem teorias, não comprovadas, de que o governo russo estaria envolvido nos atentados, a fim de obter apoio público para uma nova guerra e fortalecer a imagem de Putin. Vitaly Mansky não endossa a teoria e chega a questionar o presidente russo sobre o episódio. Ele, obviamente, condena os atos e nega qualquer participação. Mas o cineasta é categórico ao afirmar: Putin usou o medo da população como uma das principais armas para se eleger.

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“Realmente não sei quem explodiu aqueles prédios. Mas não importa quem fez isso, essas explosões e a exploração desses atentados permitiriam a vitória de Putin nas eleições”, afirmou o diretor em uma entrevista à revista eletrônica americana Salon.

No documentário, ele cita um episódio que ocorreu logo após os atentados, quando explosivos foram encontrados no subsolo de outro edifício na cidade de Ryazan. “Não é a história de uma tentativa de explosão de outro prédio, mas acho que foi uma tentativa de espalhar mais medo.”

A faceta humana do líder

Quando foi contratado para fazer o filme para a campanha presidencial, Vitaly Mansky tinha a tarefa de, além de vender a imagem de Putin como líder eficiente, também apresentar uma faceta carismática do russo, em contraposição à expressão sisuda e a fama de linha dura. Como, por exemplo, quando registra o encontro de Putin com uma professora de infância. Mas em “As Testemunhas de Putin”, os momentos que revelam o político mais à vontade – e, por extensão, mais humano – são as conversas dele com o cineasta.

O hino da Rússia é motivo de um intenso debate entre os dois. Explica-se: em 2000, Putin decidiu resgatar a melodia do hino soviético, composto durante a ditadura de Josef Stalin, com a composição de uma nova letra. Para muitos russos, no entanto, o antigo hino remete aos atos de violência e terrorismo de estado ocorridos durante o governo do ditador. Mansky e Putin discutem o assunto longamente e terminam discordando. “Decisões devem ser tomadas conforme os interesses do Estado, independente de provocarem reações positivas ou negativas”, conclui o presidente.

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Há, ainda, um outro personagem retratado em sua intimidade (talvez ainda mais que Putin) que ganha destaque no documentário: Boris Yeltsin. Na casa do ex-presidente, em companhia da família dele, o cineasta acompanha momentos chave, como o dia da eleição e a noite de ano novo, quando completa um ano de sua renúncia. Quando é declarada a vitória de Putin, Yeltsin telefona para parabenizá-lo, não consegue falar com ele e ouve a promessa de que, assim que possível, o presidente eleito retornará a ligação. Isso não acontece naquela noite e a câmera registra in loco o sentimento de frustração de quem abriu as portas do Kremlin e foi relegado mais rapidamente do que imaginava. Um destino reservado a grande parte daqueles que ajudaram a conduzir Putin ao poder.

Apenas uma testemunha?

A cena em que Putin e seus apoiadores acompanham, em um escritório, a apuração dos resultados eleitorais é emblemática. Enquanto todos celebram efusivamente, o novo presidente, de forma comedida, aceita apenas fazer um brinde antes de ir para casa. Antes disso, Mansky narra o que aconteceu com as pessoas que dividiam a mesa naquela noite. Praticamente todos deixaram o governo em pouco tempo, migrando para a oposição, sendo demitidos, presos ou morrendo em circunstâncias misteriosas. O único remanescente é Dmitri Medvedev, presidente de 2008 a 2012, quando Putin voltou a ser primeiro-ministro e manteve, assim, o comando político da Rússia.

No início de julho de 2020, Putin deu um passo importante no projeto de se manter no poder. Um plebiscito popular referendou as reformas constitucionais que permitirão a ele concorrer a mais dois mandatos presidenciais a partir de 2024 – quando se encerra o atual mandato. Como o mandato presidencial no país é de seis anos (eram quatro até 2008), Putin terá condições de completar 36 anos no poder, superando a longevidade de Josef Stalin, que governou por quase três décadas.

Ao final de “As Testemunhas de Putin”, Vitaly Mansky faz uma espécie de mea culpa pelo trabalho que ajudou a eleger o presidente russo. “Esse é o preço que tive de pagar por assumir ingenuamente que eu era apenas uma testemunha”, diz o cineasta, que desde 2014 se exilou na Letônia e que resumiu seu sentimento na entrevista à Salon. “Fiz concessões quando estava filmando e editando esse filme? Claro que sim. Mas sem concessões, infelizmente, esse filme, em princípio, não poderia existir. Mas o que eu entendo claramente agora é que foram os compromissos que todos nós assumimos, toda a sociedade, que nos levou a esse estado deplorável que estamos enfrentando agora. Creio que na política os compromissos são a coisa mais assustadora”.

Gazeta do Povo.

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