Duas fortes candidatas estão despontando entre as opções de vacinas contra a Covid-19. Os estudos sugerem que um imunizante experimental britânico e outro chinês podem provocar a desejada resposta imunológica no corpo humano. No entanto, nesse estágio inicial dos testes, ainda não está comprovado que alguma dessas vacinas pode proteger as pessoas contra a infecção pelo Sars-CoV-2.
Mas há quatro meses, ainda no início da pandemia, a notícia sobre uma outra vacina ganhou espaço nas redes. Utilizada na China, a substância criada em Cuba seria responsável pela cura de 1.500 pessoas. Para os apoiadores do governo de Miguel Díaz-Canel Bermúdez, presidente cubano, o cenário era perfeito: um produto criado com tecnologia 100% cubana havia quebrado o bloqueio econômico dos EUA e triunfado; em breve estaria imunizando bilhões de pessoas mundo afora contra os perigos do novo coronavírus.
Um dos que ficaram bastante entusiasmados com o fato foi o ex-candidato à Presidência e futuro candidato à Prefeitura de São Paulo pelo PSOL, Guilherme Boulos. Em 12 de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia recém-declarado a situação de pandemia, ele postou em sua conta no Twitter uma reportagem sobre o sucesso da nova vacina já em uso na China e responsável por esse bom número de pessoas curadas. “Vacina contra o coronavirus utilizada na China foi produzida em Cuba. De tanto gritarem ‘vai pra Cuba’ acabarão indo todos…” escreveu o líder do MTST.
Mas o que parecia ser o começo de um sonho se mostrou, ao longo do tempo, uma sequência de erros de informação (intencionais ou não). A substância a que Boulos se referiu como vacina na verdade era o “Interferon alfa 2b”, um antiviral que atua no tratamento e não na prevenção da doença.
Essa substância é comumente usada de forma profilática em outras situações, como o tratamento do HIV e o papilomavírus humano, e não foi designada especificamente para combater o SARS-CoV-2 (nome oficial do novo coronavírus). Por fim, o interferon é uma resposta natural do corpo humano a algumas infecções virais, e foi sintetizada em laboratório pela primeira vez por um cientista Suíço, em 1979.
Não é vacina
Segundo o imunologista e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP Helder Nakaya, o maior erro em toda essa situação foi ter chamado a substância de vacina. “Tratamentos com os vários tipos de Interferon já existem porque essa substância é uma molécula produzida pelo corpo para combater as infecções virais de uma forma bastante genérica. É muito diferente de uma vacina, que induz uma resposta específica contra um certo patógeno.”
A hipótese de uso do Interferon contra a Covid-19, explica Nakaya, surgiu na Inglaterra. Mais especificamente em relação às crianças, que não estariam apresentando quadros severos da doença por supostamente estarem mais sujeitas a outras infecções virais. “O rinovírus, vírus que normalmente circula durante o inverno, quando infecta uma criança faz com que aumente a quantidade de Interferon na narina. As células infectadas produzem muito Interferon, e isso protegeria as crianças contra o SARS-CoV-2 por causa dessa barreira já pré-instalada”, explicou.
“Sabendo disso, provavelmente o que os cubanos deviam estar pensando é, de alguma forma, usar Interferon profilaticamente antes de a pessoa ser infectada porque daí impediria a infecção de se estabelecer. Só que o tratamento com Interferon quando o pulmão já está comprometido não adianta muito. A resposta natural do Interferon é muito rápida, é a resposta imune inata, que é não específica. A resposta adaptativa, que é o que a vacina tenta induzir, leva alguns dias para agir, mas é específica e tem memória. Ela faz com que seu sistema imunológico ‘se lembre’ do patógeno e é por isso que a pessoa fica imune a alguns vírus”, detalhou o imunologista.
Modelo inglês x modelo chinês
Sobre os modelos inglês e chinês de abordagem à vacina, Nakaya estabeleceu uma diferença fundamental. Ambos buscam induzir essa imunidade no corpo humano, mas a forma escolhida pode trazer diferentes resultados. A vacina de Oxford, segundo o imunologista, trabalha com um adenovírus comum entre chimpanzés. Por meio de engenharia genética, os cientistas implantam uma parte do coronavírus nesse adenovírus de macaco. São as chamadas “spikes”, as pontas de proteína que o SARS-CoV-2 usa para entrar nas células humanas, mas que não têm nenhum poder de transmitir a doença.
Uma vez replicado no organismo, é esperado que o adenovírus mutante seja atacado pelo sistema imunológico, que deve criar uma “memória” contra a proteína – o que impediria uma futura infeção em caso de contato com o coronavírus real. A técnica chinesa é semelhante, mas eles estão usando um adenovírus humano no processo.
“Quase ninguém vai ter anticorpos naturais contra o adenovírus de chimpanzé. Quando esse vírus modificado for introduzido no corpo, o sistema imunológico vai atacá-lo e criar anticorpos contra a proteína, e assim vai impedir uma futura infeção do coronavírus. O problema em usar o adenovírus humano é que uma fração considerável de pessoas já possui imunidade natural contra esse patógeno. Se uma dessas pessoas já imunes tomar esse tipo de vacina, o sistema imunológico ‘vai olhar e dizer: opa, já vi esse vírus antes’. Pode ser que o próprio sistema destrua a vacina antes de ela criar a resposta imunológica contra a Covid-19”, detalhou Nakaya.
Investimento contínuo
O modelo de vacina utilizado em Oxford, lembrou o imunologista, foi baseado em trabalhos para combater a Mers, uma síndrome respiratória provocada também por um coronavírus identificado em 2012 na Arábia Saudita. Os sintomas eram parecidos com os da Covid-19: tosse, febre e falta de ar. O trabalho inglês vem sendo feito em tempo recorde, mas poderia ter sido ainda mais rápido se os investimentos globais em pesquisas tivessem sido mantidos desde a primeira grande epidemia de Síndrome Respiratória Aguda (Sars), em 2003.
“A gente tem que manter um investimento contínuo em ciência para poder nos preparar. Se isso tivesse sido feito desde a Sars, já estaríamos muito mais avançados na pesquisa da vacina contra o SARS-CoV-2. O problema é que a gente se esquece das epidemias. Ninguém se lembra mais do problema que foi o Zica, H1N1. Quando essa situação da Covid-19 se normalizar, espero que as pessoas mudem, e que se tenha muito mais interesse em investimentos nessas pesquisas”, avaliou Nakaya.
Persistência no erro
Voltando ao caso da “vacina” cubana, o próprio Boulos admitiu o equívoco dizendo que “algumas reportagens falaram indevidamente em vacina, induzindo ao erro.” Uma dessas reportagens, a do site Colarebo, só traz a palavra vacina no título. O uso, apesar de restrito, é enfático: “Cuba anuncia que já fabricou vacina contra o coronavírus.”
O texto se refere a uma postagem feita no Twitter pelo presidente cubano, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, na qual o mandatário apoia “o governo e o povo chinês pelos esforços no combate ao coronavírus.” Não há referência a “vacina”, apenas a “medicamento” para tratar do Interferon.
Agora, quatro meses depois, os noticiários da ilha trazem novamente referências a uma “vacina” produzida em Cuba. A promessa da vez é o CIGB 258, uma substância que, de acordo com reportagem publicada no site Cuba Debate, “é capaz de frear os processos de inflamação pulmonar que levam à morte os pacientes em estados críticos e graves da Covid-19.” Aqui, mais uma vez o termo vacina é utilizado para se referir a um medicamento usado para tratar os efeitos, e não prevenir a doença.
Outra reportagem, da agência turca de notícia Anadolu, traz detalhes da eficácia do tratamento feito com a CIGB 258 com 58 pacientes. De acordo com o texto, a chefe do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIGB, na sigla em espanhol) “assegurou que 90% dos casos graves se recuperaram do vírus com o tratamento da vacina.” Mesmo assim, lamenta o texto, o Brasil não deve seguir o exemplo cubano e vai optar por testes com a vacina de Oxford.
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