A liberdade de expressão na mira do CNMP

Decisão recente do STF impediu a Polícia Federal de fazer o seu trabalho e revistar o gabinete do senador José Serra.| Foto: Gil Ferreira/SCO/STF

Na última terça-feira, dia 21 de julho, o coordenador da força tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, utilizou-se de seu twitter para criticar a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que barrou o cumprimento de um mandado de busca e apreensão no gabinete do senador José Serra (PSDB-SP), alvo da Operação Paralelo 23, que apura o repasse de R$ 5 milhões da empresa Qualicorp na forma de caixa 2 para a campanha de Serra em 2014. A decisão,  foi tomada pouco depois que a Polícia Legislativa, por ordem de Davi Alcolumbre (DEM-AP), impediu a entrada dos policiais no gabinete. Surpreendentemente, a declaração de Dallagnol motivou no dia seguinte a abertura pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) de procedimento para investigar as críticas feitas pelo procurador. A reação desproporcional do CNMP alertou mais uma vez a sociedade a respeito de sucessivas violações à liberdade de expressão que têm acontecido no país nos últimos meses.

A declaração de Dallagnol foi feita numa sequência de tuítes na sua página pessoal. A crítica do procurador foi realizada de maneira absolutamente respeitosa. Na forma de uma análise técnico-jurídica, aponta as contradições da decisão do ministro Toffoli relacionada a decisões anteriores do STF sobre o foro privilegiado e as consequências prováveis da decisão se esta servisse de base para outras do mesmo teor. “O STF limitou o foro privilegiado para crimes praticados no exercício e em razão da função em 03/05/18”, escreveu o procurador, e complementou: “É pacífico que José Serra não tem foro privilegiado para os crimes específicos que a Justiça Eleitoral investiga na operação de hoje. O STF não tem competência sobre o caso”. A partir daí, analisa as consequências prováveis da decisão, como a possibilidade de que possa servir de precedente para anular operações contra outros profissionais, sob alegação de risco em relação à atividade dos investigados. No trecho mais incisivo, remata: “Com todo o respeito ao STF e seu presidente, trata-se de solução casuísta que está equivocada juridicamente e que, independentemente de sua motivação, a qual não se questiona, tem por efeito dificultar a investigação de poderosos contra quem pesam evidências de crimes”.

As críticas apresentadas pelo procurador não fogem ao direito de crítica legítimo. Não ofendem a dignidade do ministro, nem colocam em xeque sua reputação ou ilibada conduta. O texto não possui qualquer injúria, calúnia ou insinuação contra a pessoa de Dias Toffoli. Por isso mesmo, a manifestação do CNMP acende um sinal de alerta. A abertura de uma investigação quando não há qualquer indício de materialidade de abuso não é nada saudável numa democracia e pode gerar, no mínimo, uma autocensura em profissionais zelosos de sua reputação. Em diversas outras ocasiões, já tivemos a oportunidade de lembrar que a liberdade de expressão não é absoluta em nenhum país do mundo. No Brasil, o equacionamento entre a proteção à honra e a liberdade de expressão se dá de maneira equilibrada, com a doutrina e a jurisprudência tendo desenvolvido critérios claros para balizar a aplicação da lei (critérios que, em boa medida, vêm se esfumando nos últimos anos). De modo geral, a liberdade de crítica é mais ampla em temas de interesse público e a proteção da honra de figuras públicas é entendida de maneira mais restrita. Por isso mesmo, ainda que a crítica de Dallagnol fosse um pouco mais dura ou irônica, mantendo-se objetivamente em torno da decisão, ela seria legítima. Quanto mais nos termos dos tuítes de 21 de julho. Não é demais lembrar, portanto, que nem figuras públicas nem quaisquer outras pessoas estão protegidas de serem objeto de contestação técnica na sua atuação, no conteúdo e na forma utilizados pelo procurador na sua página pessoal.

Consideremos, no entanto, em um esforço para tentar compreender a atuação do CNMP, a tese de que a natureza do cargo público poderia restringir o direito do procurador a determinadas manifestações nas redes sociais. Diversas funções no serviço público tem a sua liberdade de expressão restrita por obrigações de ofício e isso nunca foi um grande problema. Policiais militares, soldados e oficiais das Forças Armadas na ativa, por exemplo, podem ser punidos administrativamente por manifestações políticas mais contundentes. Funcionários da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem sua conduta estritamente regulada em termos de manifestação pública. Nesses casos, as eventuais restrições se estabelecem comumente pelas leis orgânicas que regem a atuação dos servidores em cada instituição. Ou então por decisão de um órgão regulador superior, como aconteceu quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma resolução em 2019 com normas de conduta para juízes em redes sociais que vedava a manifestação sobre processos pendentes de julgamento e críticas a decisões de outros magistrados, entre outros pontos, com base numa interpretação bastante controversa da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).

O problema é que, no caso do Ministério Público Federal, não existe qualquer dispositivo que vete claramente esse tipo de manifestação na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LOMP). No seu Artigo 43, a LOMP elenca, entre os deveres éticos dos membros do Ministério Público, “zelar pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções”. Somente uma interpretação muito casuística do dispositivo poderia prever que ele enquadra qualquer crítica a decisões judiciais feitas por procuradores, principalmente no teor respeitoso utilizado pelo coordenador da Lava Jato na rede social. É só comparar o conteúdo do texto com uma regulamentação severa como a que rege as transgressões passíveis de punição administrativa nas Forças Armadas. Nesse caso, o decreto 4346 de 2002 define como transgressão “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”.

É importante lembrar que o CNMP, diferente do que aconteceu com o CNJ em 2019, nunca emitiu nenhuma resolução que proibisse os procuradores de fazer esse tipo de manifestação. O máximo que parece existir nesse sentido é a “Recomendação de caráter geral nº 01, de 3 de novembro de 2016”. Nesta, consta, entre outras diretrizes, “o membro do Ministério Público deve evitar, em seus perfis pessoais em redes sociais, pronunciamentos oficiais sobre casos decorrentes de sua atuação funcional, sem prejuízo do compartilhamento ou da divulgação em seus perfis pessoais de publicações de perfis institucionais ou de notícias já publicadas oficialmente pelo Ministério Público”. O texto é bem diferente do veto explícito estabelecido pelo CNJ para os magistrados opinarem sobre processos pendentes ou decisões de outros juízes. Afinal, procuradores sequer tem o dever de imparcialidade que obriga magistrados no Estado Democrático de Direito. A própria Constituição estabelece, no seu artigo 127, como função do Ministério Público, “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Logo, assumir uma posição frente a uma decisão que se acredite que afronta a lei não poderia ser considerado um desvio; em muitos casos poder-se-ia dizer até mesmo que a manifestação é salutar. Ademais, importa ressaltar que Dallagnol não estava envolvido na operação em questão, nem mesmo deu qualquer declaração oficial, tendo utilizado sua rede social pessoal para opinar sobre uma decisão tomada por um ministro do STF, em tom absolutamente respeitoso e condizente com a dignidade do cargo.

Em face do exposto, voltamos a afirmar, é preocupante a abertura de procedimento investigativo pelo CNMP. O movimento nem mesmo se assemelha à decisão passada do mesmo conselho em 2019, que decidiu punir Dallagnol por ter dado uma entrevista à rádio CBN em que fazia críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, a decisão por 8 votos a 3 dos conselheiros centrou fogo em termos supostamente inadequados utilizados pelo procurador, que falou em “panelinha” e afirmou que os ministros passavam uma mensagem de leniência com suas ações. A decisão tampouco aqui foi condizente com o melhor direito, mas havia pelo menos uma questão de interpretação dos termos usados na entrevista.

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Dessa vez, porém, Dallagnol não pode ser acusado sequer de pecar pela forma como se expressou em relação ao ministro, e muito menos pelo conteúdo. Ele simplesmente comentou a decisão observando a jurisprudência consolidada, de maneira técnica, precisa e sem adjetivações. Diante desse fato, a possibilidade de que haja uma disposição do CNMP, utilizando-se de condenação anterior como precedente para punir qualquer tipo de crítica feita por procuradores a decisões judiciais é extremamente preocupante.

Se for esse o caso, o papel mesmo do Ministério Público como instituição independente começa a ficar ameaçado. Cercear o direito de liberdade de expressão para os servidores que têm justamente a prerrogativa de defesa da ordem jurídica equivale a uma censura também àqueles que a instituição deve representar, isto é, toda a sociedade. Em inúmeras ocasiões, o MP tem se portado como porta-voz de demandas sociais que não encontram na política ou na Justiça a sua defesa. Impedir que essa função seja exercida é alienar a sociedade de um ativo poderoso na defesa de seus direitos e liberdades fundamentais.

Ademais, a decisão acaba se somando a um perigoso movimento de centralização, explícito desde a posse de Augusto Aras como Procurador Geral da República (PGR), que tende a diminuir a independência de procuradores e cercear o dinamismo da instituição, características essenciais para o seu pleno funcionamento no Estado Democrático de Direito. As externalidades que podem decorrer desse processo atingem bem mais do que os avanços no combate à corrupção dos últimos anos. Podem comprometer o funcionamento mesmo do sistema de justiça criminal. Espera-se que o CNMP entenda a gravidade do que está em jogo e arquive sem mais delongas essa malfadada investigação.

Gazeta do Povo.

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