Minha dúvida nem é tanto sobre estarmos ou não vivendo um período de exacerbação histórica, no qual todos, por acharem que têm algo a dizer, acabam por contribuir para um conflito diário interminável e exaustivo. Minha dúvida tem mais a ver com o tamanho da minha colaboração para esse estado de beligerância.
Hoje mesmo. Abri a Caixa de Pandora do Passarinho Azul e, de cara, me deparei com o vídeo de um desembargador chamando um policial de analfabeto. O desembargador andava sozinho na praia e o policial quis multá-lo por ele não estar usando máscara. Tudo na cena é absolutamente errado. Fora dela também, uma vez que a Corregedoria Nacional de Justiça determinou a abertura de uma investigação para apurar a conduta do desembargador.
O que há no episódio que justifique o uso das engrenagens do Estado? De um lado está um “agente da lei” fazendo cumprir (eichmanniamente para uns, político-sanitariamente correto para outros) um decreto quanto ao uso de máscaras. De outro, um senhor que sabe que está acima dos demais mortais e que o pior que pode lhe acontecer é a aposentadoria compulsória.
Mas e se não fosse um desembargador, e sim um pedreiro que estivesse sendo multado e talvez humilhado por um agente da lei? Que palavras usaríamos para se referir a ele e ao policial? Pergunto isso porque estou pensando na inveja, no ressentimento e no rancor que também norteiam nosso mui particularíssimo e algo descalibrado senso se justiça.
E eu, que tenho essa grave falha de caráter de ser crítico das medidas de isolamento social, tenderia a me solidarizar com o cidadão vítima da coerção. Mas como me solidarizar com um senhor de cabelos brancos que se impõe por meio do infame “você sabe com quem está falando?” e chama o semelhante de analfabeto?
Pouco mais de 24 horas se passaram desde que o vídeo ganhou as redes sociais e já há toda uma discussão tentando dar uma dimensão maior ao caso. “A punição ao desembargador revelará em que tipo de país vivemos”, diz um. E logo aparecerá alguém sugerindo que o comportamento do desembargador justifica toda uma reforma político-social, quando não uma verdadeira revolução. Porque tudo, hoje, é desculpa para o enfrentamento, para a guerra, para o esmagamento do indivíduo, para a destruição das instituições, para a reescrita do mundo.
Autoritarismo despudorado
Na realidade dos intelectuais que veem fascismo em todos os cantos da democracia, mas são incapazes de questionar (eu disse questionar, não humilhar o coleguinha) o uso compulsório de máscaras, o cenário não é muito diferente. Basta substituir o desembargador pela historiadora e você terá a repetição do conflito. Porque mudam as palavras, o tom de voz e os insultos, mas a atmosfera belicosa continua a mesma. Resta saber até quando aguentaremos.
Lilia Moritz Schwartz, autora de um livro sobre “o autoritarismo brasileiro”, deu uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. “Nesse contexto em que vivemos é preciso chegar à conclusão de que toda arte é política. Não é porque uma obra não diga diretamente respeito a uma questão eminentemente política que ela deixa de ser política”, disse ela em sua primeira intervenção – que não é nem de longe a mais problemática.
Mas que revela quão afundada está a intelectualidade brasileira na mesma lama antropocêntrica que deu origem ao desembargador que legitima as ações do Estado nos dias úteis para rasgá-las e jogá-las na cara do policial no fim de semana. “Tudo é política”, diz a historiadora, eliminando o caráter espiritual da apreciação estética.
Como se uma pessoa não pudesse ler, por exemplo, Viagem ao Fim da Noite, do antissemita Louis-Ferdinand Céline, para se confrontar com seus próprios demônios. Como se a obra de Jorge Amado fosse incapaz de despertar no leitor sensações mais “à flor da pele” e se resumisse a panfletos marxistas. Como se a poesia do já citado Bruno Tolentino nos guiasse a um voto qualquer, e não ao deslumbrante universo do indivíduo que busca coisa bem diversa desse poderzinho terreno que tanto parece fascinar Schwarcz.
Na mesma entrevista, ela diz que não se deve usar o termo “vandalizar” para se referir à destruição de obras, porque vandalizar tem uma conexão negativa. Fofo, né? Em seguida, ela justifica medidas como a tentativa recente de jogar o filme “…E o Vento Levou” na lata de lixo da história com duas frases despudoradas: “A ideia não é proibir a circulação de uma obra. No limite, se existirem obras muito perversas, a destruição das mesmas não fará falta a ninguém”.
Mas com que autoridade uma pessoa que usa “as mesmas” como pronome pessoal fala de obras perversas que não farão falta a ninguém? Quem as classificará como perversas ou não? Uma etnia específica? Um soviete? E se eu quiser absorver a “perversidade” de uma obra de arte para, a partir dela, compreender o que há de perverso em mim e no mundo e, assim, tentar me tornar uma pessoa melhor? Peço autorização à dra. Schwarcz ou a Djamila Ribeiro?
Que Mário?
Já nas últimas horas do fim de semana, descubro que a turma que confunde sentimentalismo com sensibilidade está numa investida contra o programa humorístico Pânico. Tudo porque um tiktoker (pessoa que passa o dia fazendo vídeos na rede social Tik Tok) chamado Mario Jr. teria sido humilhado pelo apresentador e comentaristas que o aconselharam a estudar e não depender do aplicativo para ganhar a vida ou fazer carreira.
Assisti ao vídeo da “humilhação”. Uma, duas, dez vezes. Sem encontrar qualquer coisa ali que pudesse ser comparável ao que o desembargador fez na praia ou a historiadora fez na entrevista, corri para o Tik Tok a fim de analisar o trabalho de Mario Jr. (que, apesar do sobrenome em comum, não é meu parente).
Talvez um dia eu escreva sobre este mundo estranho dos influenciadores digitais. Por enquanto, me restrinjo a torcer para que, primeiro, Mario Jr. não se leve tão sério a ponto de sofrer por dois ou três comentários semijocosos. Depois, para que Lilia Moritz Schwarcz não venha querer politizar os vídeos do Tik Tok, talvez encomendando de Mario Jr. um livro sobre este mal que também me aflige: a juniorfobia.
Por fim, e sem que uma coisa tivesse necessariamente a ver com a outra, torço para que o desembargador lá dos primeiros parágrafos venha a público pedir desculpas por ter destratado o policial. E, assim, demonstre a incrível capacidade humana de errar, aprender e, com um tiquinho de sorte, se redimir.
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