Damares está certa: precisamos discutir o início da vida sexual

Todos temos preconceitos e gostamos de acreditar que não temos, o que é a melhor fórmula para jamais superá-los. Impossível que parte da mídia, dos inteligentinhos e dos progressistas consiga analisar com objetividade qualquer proposta ou fala da ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves. Ela é pastora evangélica, símbolo do que há de mais retrógrado e obscurantista na mente preconceituosa dos nossos inteligentinhos. Quando essa imagem precede a realidade e impede que ela seja percebida ou analisada, temos o exercício do preconceito, uma criação de conceito prévia ao contato com fatos e dados.

A reação de repulsa e ridicularização automática provavelmente continuará sendo predominante em parte da imprensa e do debate público sempre que o assunto for o Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez de Crianças e Adolescentes. Como evangélicos debatem muito regras morais sobre sexualidade, automaticamente se pensa na simplificação grosseira de propor que a única forma de prevenção seja falar para não manter relações sexuais e ponto. Na cabeça preconceituosa de parte da nossa sociedade, o evangélico também é automaticamente burro.

Qualquer avaliação que se faça agora sobre o plano é absolutamente fantasiosa por uma razão simples: ele ainda não existe. Não sabemos se é bom ou ruim, mas sabemos que não se restringe a uma inconsequente política de abstinência como tem sido alardeado. O plano mira em um problema que várias famílias sentem mas não dói nas elites: a sexualização precoce.

O mesmo grupo que se faz de indignado reclamando que a ministra estaria colocando sua ideologia ou sua crença em uma política pública é o que faz isso desde a década de 90, ignorando o que diz a população. Nossas políticas de prevenção da gravidez precoce e de doenças sexualmente transmissíveis tratam como favas contadas o início cada vez mais precoce da vida sexual. Ao mesmo tempo, é tabu ter políticas públicas que abordem os aspectos psicológicos da sexualização precoce, da necessidade de aprovação do grupo e dos problemas de autoestima. Não me parece que crianças e adolescentes se beneficiem desse silêncio.

A questão da gravidez precoce é um problema que se transforma em uma chaga social pela carga traumática que arrasta por gerações. Todos os anos, milhares de meninas de menos de 14 anos de idade se tornam mães no Brasil. Todas foram estupradas, não há consentimento para sexo antes dessa idade. A criança será criada por outra criança, em um ambiente provavelmente desestruturado e onde já há um trauma. Em muitas famílias, a sistemática é repetida. O impacto se dá em todas as áreas: educação, saúde, economia, desenvolvimento. Um país é feito de gente, não de números.

As informações sobre sexualidade que os adolescentes brasileiros recebem são incompletas, muito parecidas com as aulas que tínhamos na década de 80 em colégio de freira. Fala-se de prevenção de doenças e gravidez. Mas a sexualidade tem uma dimensão psicológica importantíssima que precisa ser abordada se quisermos políticas realistas e eficientes.

A questão da sexualização precoce é um debate constante nas famílias e entre professores. Para quem não tem familiaridade com o tema, pode parecer algo puramente biológico, aquele festival de hormônios típico da adolescência. Claro que um dos componentes é este, mas há outros, de ordem cultural e social. Hoje reclamamos muito de conteúdos de televisão aberta, mas o ápice da mistura entre crianças e sexualização foi o final da década de 90 e início dos anos 2000. Os adolescentes foram ensinados a ver sexualidade como sinônimo de glamour e ostentação, não como algo pessoal.

Por outro lado, temos a realidade social e educacional de poucos sonhos e muita humilhação. Em diversas periferias do Brasil o direito de sonhar é sequestrado numa idade muito jovem. Quem estuda, trabalha e faz tudo certo é o trouxa, o humilhado, o pobre. Os que triunfam são os que transgridem e são promíscuos e violentos. Sexo passa a ser poder, tanto de agredir quando no sentido de status. Sem outros elementos para garantir respeito diante do grupo, como deve ocorrer em sociedades que providenciam dignidade para os jovens, a sexualidade assume este papel.

Na dinâmica de famílias desestruturadas, relações violentas e consumo de álcool e drogas, seria mentira dizer que o adolescente brasileiro decide quando quer começar sua vida sexual e sabe das implicações. Ele é empurrado para a sexualidade por um misto de hormônios, falta de oportunidades, baixa autoestima, desejo de pertencer ao grupo e ser respeitado. Sexo é poder e, se não pode nada diante de um mundo adulto que lhe nega oportunidades, talvez pense que é uma boa lançar mão dessa carta.

Não é suficiente falar sobre métodos contraceptivos e doenças sexualmente transmissíveis na tentativa de atacar uma situação tão complexa e que se arrasta há anos. Os jovens já estão informados há décadas e precisamos descobrir por que tantos deles não usam as informações e como mudar esse quadro.

Em todas as escolas brasileiras são ensinados os métodos contraceptivos. Excetuados os casos de violência sexual, nos demais casos de gravidez precoce, a informação simplesmente foi ignorada. Postos de saúde distribuem preservativos e anticoncepcionais gratuitamente. Há quem goste de simplificar e coloque na conta da má conduta individual ou da permissividade da família. Não há como saber sem um aprofundamento e precisamos mudar esse quadro, diminuir as exceções ao mínimo e garantir um ambiente mais saudável às próximas gerações.

Crianças precisam saber que ninguém pode tocá-las e como procurar ajuda se alguém tentar. Adolescentes precisam saber que não são obrigados a começar uma vida sexual se não se sentirem prontos para isso e é necessário debater, antes de tudo, o que exatamente “estar pronto” significa para cada um. O efeito do início da vida sexual não é só gravidez e doença, é acima de tudo nos relacionamentos e sentimentos, na nossa capacidade de fazer planos, de confiar e de persistir nos nossos sonhos.

Durante as últimas décadas, aprendemos que é normal ter sexualidade, gostar de sexo e falar sobre isso. Os adolescentes nasceram em um mundo que já era assim, não no nosso de antigamente, em que tudo era tabu, vergonha e medo. Talvez para eles, o entrave seja dizer não ou adiar, pedir proteção, ser prudente, admitir que relações sexuais podem ter significado emocional. Não sabemos e é preciso pesquisar.

Muita gente mais velha que eu tem escrito na imprensa que Damares Alves está tentando normalizar a abstinência sexual. No caso das crianças, concordo plenamente com a ministra e aplaudo a iniciativa. A questão dos adolescentes é completamente diferente, mas é curiosa a afirmação de que abstinência sexual na adolescência é anormal. A mesma violência castradora que já humilhou gerações por pensar em sexo agora humilha quem não pensa em sexo cedo o suficiente.

Nem entre os animais a sexualidade se presta apenas à reprodução, tem função psicológica e social importante. Políticas públicas que ignoram essa dimensão, como as que temos hoje, são ineficientes porque não se baseiam na realidade. Impossível saber se o plano da ministra Damares será eficiente ou não, o possível no momento é imaginar e torcer. Mas o debate está posto: falar sobre sexualidade como se fosse uma feira de ciências já é uma realidade no Brasil, resta falar sobre relações, escolhas, autonomia e liberdade.

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

Gazeta do Povo.

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