O presidente Jair Bolsonaro determinou, em 9 de junho, a concessão de medalhas da Ordem do Mérito da Defesa ao governador de Rondônia, Marcos Rocha (sem partido), e a cinco deputados federais. Poucos dias antes, em 28 de maio, Bolsonaro havia premiado com a Ordem do Mérito Naval o procurador-geral da República, Augusto Aras, e três ministros de seu governo, além de três senadores e três deputados federais. Entre os parlamentares agraciados estão o líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), e o deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), conhecido como “Hélio Negão”, amigo de Bolsonaro.
As duas premiações concedidas pelo chefe do Executivo figuram entre as principais honrarias do universo militar brasileiro. Podem ser destinadas tanto pelo presidente da República quanto pelo ministro da Defesa. Ao longo de 2020, a Ordem do Mérito da Defesa e a Ordem do Mérito Naval foram oficializadas a uma gama variada de personalidades, que incluiu políticos de diferentes esferas, juízes, artistas, empresários e até o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e um dos pivôs da queda do ex-ministro da Justiça, Sergio Moro. Nem todos ainda receberam efetivamente as medalhas; as solenidades de entrega não seguiram o rito de anos anteriores, por causa da pandemia de coronavírus.
As legislações que regulamentam as honrarias determinam que as medalhas devem ser entregues “àqueles que tenham prestado serviços relevantes ao Ministério da Defesa, às Forças Armadas do Brasil, em sua totalidade, ou a uma Força Singular, com reflexos positivos nas outras Forças”, no caso da Ordem do Mérito da Defesa, e a “personalidades civis e militares, brasileiras ou estrangeiras, que houverem prestado relevantes serviços à Marinha”, para a Ordem do Mérito Naval.
Apesar das especificações previstas em lei, o Ministério da Defesa, responsável pela gestão das premiações, não é transparente em relação aos critérios utilizados para a concessão das honrarias. A Gazeta do Povo questionou a pasta sobre os “serviços relevantes” prestados por parte dos homenageados em 2020 e não recebeu uma resposta específica.
“As medalhas representam uma antiga tradição militar, uma forma de homenagear àqueles que se destacaram. Sempre constituíram, na carreira militar, uma forma muito importante de motivação e reconhecimento. Hoje, estão presentes nas Forças Armadas da maior parte dos países. No Brasil, as Forças possuem um conjunto de medalhas e condecorações, com as quais, além de homenagear seus integrantes que se destacaram ao longo de suas respectivas carreiras, buscam também homenagear personalidades e instituições que desempenharam serviços relevantes para as respectivas forças”, diz nota enviada pela assessoria do Ministério.
A Defesa também não respondeu os questionamentos sobre as despesas relacionadas à premiação. “Os custos com tais medalhas são absorvidos dentro dos próprios orçamentos das Forças”, afirma.
A falta de critérios para a concessão das medalhas motivou o site da revista Sociedade Militar, especializado em notícias sobre as Forças Armadas, a entrar com um pedido de esclarecimentos junto ao Ministério por meio da Lei de Acesso à Informação e a denunciar o caso na Controladoria-Geral da União. A pasta não passou as informações, sob a alegação de que precisaria respeitar a privacidade dos homenageados.
Situação cria desequilíbrio, diz advogado que atende militares
A entrega de honrarias a personalidades com vínculos pequenos — ou desconhecidos — com o universo militar é contestada por integrantes das Forças Armadas que não pertencem às cúpulas das corporações. Eles identificam um desprestígio das instituições aos militares de carreira e uma valorização a detentores de cargos públicos.
O advogado Claudio Lino, especializado em assuntos militares, avalia que a situação cria uma “certa dificuldade” para quem aciona as Forças Armadas na Justiça. “Os desembargadores recebem homenagens, dão aulas em quartéis, são convidados para jantares… cria-se então um cenário de falta de paridade de armas para os advogados”, afirma.
Lino, que é diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Análise de Legislações Militares (Ibalm), defende alterações nas leis que regulam a concessão de medalhas como a Ordem do Mérito da Defesa e a Ordem do Mérito Naval.
“É algo que viola o princípio da moralidade, e é também contrário ao patrimônio. O que explica um juiz federal receber uma medalha da Marinha? O critério da lei é ter ‘serviços prestados’ a favor da Força. Então no caso dele o ‘serviço prestado’ é ter julgado a favor da Força? Acontece um ‘você julga a favor da Força, e eu vou te dar uma medalha’? Não tem explicação palpável para isso”, critica.
O desembargador Baltazar Miranda Saraiva, do Tribunal de Justiça da Bahia, e o advogado André Luís Godinho, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estão entre as autoridades que foram contempladas com as honrarias militares em 2020. Saraiva foi agraciado com a Ordem do Mérito da Defesa e Godinho com a Ordem do Mérito Naval. A Gazeta do Povo os procurou para falar sobre as premiações, e ambos responderam que os critérios para escolha dos prêmios são do Ministério da Defesa.
A reportagem também consultou as assessorias dos dois atuais ministros do governo Bolsonaro que foram contemplados com a Ordem do Mérito Naval em 2020, Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, e Jorge Francisco, da Secretaria-Geral (o terceiro premiado foi Abraham Weintraub, que não é mais o titular da Educação). Novamente, a resposta recebida foi de que a decisão do prêmio compete ao Ministério da Defesa.
Antônio recebeu a medalha em seu gabinete no dia 9 de julho. Ele registrou o fato em suas redes sociais: “Muito honrado por receber a medalha de Ordem do Mérito Naval no grau Grande Oficial da Marinha, uma honraria oferecida a ministros de Estado”.
A citação ao prêmio foi a primeira menção à Marinha ou ao termo “Naval” feita pelo ministro em seu perfil no Twitter, que está ativo desde 2011. Antônio é deputado federal licenciado, e está em seu segundo mandato, representando o estado de Minas Gerais. No primeiro, não apresentou propostas relacionadas a questões da Marinha e nem integrou comissões que abordam temas ligados às Forças Armadas, como a de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
Em 2019, Aeronáutica homenageou Rodrigo Maia e Sergio Moro
A Aeronáutica concede a Ordem do Mérito Aeronáutico. No ano passado, essa honraria também foi destinada a um número expressivo de políticos. Decreto assinado pelo presidente Bolsonaro em 20 de setembro determinou a entrega da honraria ao então ministro Sergio Moro, aos ministros Jorge Francisco (Secretaria-Geral), Paulo Guedes (Economia) e Damares Alves (Direitos Humanos), ao governador Romeu Zema (Novo-MG) e a sete senadores e seis deputados federais — entre eles, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, que recentemente concedeu a prisão domiciliar ao ex-policial Fabrício Queiroz e passou a ser cotado para o Supremo Tribunal Federal (STF), também foi um dos contemplados.
A entrega da Ordem do Mérito Aeronáutico a ministros e políticos também motivou críticas por parte dos militares que não pertencem à cúpula das Forças Armadas. As normas da Aeronáutica, entretanto, são distintas das que regulamentam a Ordem do Mérito Naval e a Ordem do Mérito da Defesa.
O decreto da Ordem do Mérito Aeronáutico diz que o prêmio pode ser entregue a quem contribuiu com a Aeronáutica e também a personalidades que “se hajam distinguido no exercício de sua profissão”.
Políticos que receberam medalhas militares em 2020
Ordem do Mérito da Defesa
- Bia Kicis (deputada federal, PSL-DF)
- Henrique Carballal (vereador de Salvador, PDT)
- Felipe Francischini (deputado federal, PSL-PR)
- José Priante (deputado federal, MDB-PA)
- Marcelo Nilo (deputado federal, PSB-BA)
- Marcos Rocha (governador de Rondônia, sem partido)
- Vinícius Carvalho (deputado federal, Republicanos-SP)
Ordem do Mérito Naval
- Abraham Weintraub (ex-ministro da Educação)
- Coronel Armando (deputado federal, PSL-SC)
- Eduardo Gomes (senador, MDB-TO)
- Hélio Lopes (deputado federal, PSL-RJ)
- Irajá Silvestre (senador, PSD-TO)
- Jorge Francisco (ministro da Secretaria-Geral)
- Luiz Philippe de Orleans e Bragança (deputado federal, PSL-SP)
- Marcelo Álvaro Antônio (ministro do Turismo e deputado federal licenciado pelo PSL-MG)
- Plínio Valério (senador, PSDB-AM)
- Professor Joziel (deputado federal, PSL-RJ)
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