Algo no ar

Wálter Maierovitch. FOTO: DENISE ANDRADE/ESTADÃO

Com a sua conhecida ironia, o escritor e jornalista gaúcho Apparício Torelly, conhecido pelo apelido de Barão de Itararé ao inaugurar o humorismo político no Brasil, escreveu: “Há algo no ar, além dos aviões de carreira”.

Quando o ministro Gilmar Mendes tira a toga e se coloca em panos de boquirroto, o cidadão minimamente informado percebe existir “algo no ar”.

No sábado 11, o ministro Gilmar Mendes, numa ‘live’, disparou grave e injusta ofensa e soltou a seguinte estultice: “O Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável”. Referia-se o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) à linha de atuação do governo federal e à imaginária participação do Exército nacional.

Pela fala do ministro do STF se nota a confusão que ele faz entre a instituição Exército Nacional e o ministério da Saúde do governo presidido por Jair Bolsonaro. Como sabem até os reprovados em exame de qualificação profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o Exército não faz parte do Poder Executivo e nem é instituição do governo federal.

Sob o prisma jurídico, o comando do Exército nacional, diante da pandemia, não poderia deixar de atender à requisição (atenção: requisição) do governo federal.

Assim e sem entrar no mérito da conveniência, o comando do Exército nacional colocou à disposição membros do seu quadro. Frise-se, ao ilustre e honrado comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, não cabia condicionar o atendimento da requisição a uma análise crítica da política de saúde pública do governo Bolsonaro.

A propósito, deveria lembrar o ministro Gilmar que, por requisições, e desde o governo do presidente Collor de Mello até a sua ida para o Supremo Tribunal Federal (STF), ele esteve diversas vezes afastado do Ministério Público Federal, e do seu então honroso cargo de procurador da República. Isso para servir ao poder Executivo da União. E, nessas épocas, os procuradores-gerais da República não discutiram a conveniência e a oportunidade da requisição feita pelo Executivo e referente ao então procurador Gilmar Mendes.

A lei orgânica da Magistratura proíbe ao juiz falar fora dos autos. Veda, também, críticas às decisões de colegas. Não permite ter, além da função de magistrado, outra atividade que não seja a de professor. Mais ainda, impede filiação política partidária e críticas a outros poderes e instituições da nossa República democrática.

O ministro Gilmar Mendes desrespeitou diversas vezes a lei orgânica. Por exemplo e a mostrar que vem de longa data, compareceu a uma reunião com Lula no escritório de advocacia de Nelson Jobim. Logo depois, procurou o líder do partido adversário do político Lula e relatou fatos posteriormente desmentidos quer por Jobim, quer por Lula. Não se deve olvidar os jantares com o então presidente Michel Temer, quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral e pendia processo de impugnação da chapa Dilma-Temer. Aliás, com Gilmar Mendes, pós impeachment de Dilma, a excluir Temer de responsabilidade por abuso do poder econômico da chapa.

Sobre as incontinências do ministro Gilmar Mendes convém lembrar as legítimas reações dos ínclitos ministros Roberto Barroso e Joaquim Barbosa. O ministro Gilmar Mendes, com o devido respeito ao seu cargo, não tem limites e dá mau exemplo aos magistrados.

Pela gravidade do crime de genocídio e outros similares, os países membros das Nações Unidas, em Assembléia plenária e por 120 votos a favor e sete contrários, aprovou o projeto final do estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI). Na convenção de Roma de 18 de julho de 1998 foi instituído o TPI e um dos fundamentos foi “ il bisogno di punire i responsabili di quelle atrocità che arrivano a negare l´essenza della dignità umana. Che la comunità internazionale riconosce in tal modo un debito di equità nei confronti delle vittime e un dovere di memória rispetto alle generazione future” ( a necessidade de punir os responsáveis das atrocidades que chegam a negar a essência da dignidade humana. Que a comunidade internacional reconhece de toda forma um debito de equidade em face das vítimas e um dever de memória com relação às gerações futuras).

Dispensável gastar tinta para ressaltar trata-se o genocídio de crime contra a humanidade. Colocar o Exército como partícipe desse tipo de crime é, na verdade, ofender toda a nação brasileira, que tem na instituição, desde a democratização, uma força exemplar, com atuações humanitárias elogiadas nas vezes que foi chamada (requisitada) pelas Nações Unidas e os seus soldados usaram o glorioso “casco azul”. Por aí, já dá para medir o tamanho da ofensa perpetrada pelo ministro Gilmar Mendes.

A nota do ministério da Defesa, subscrita pelos três comandantes das armas, Exército, Marinha e Aeronáutica, contou com o equilíbrio que faltou ao desequilibrado ministro Gilmar Mendes.

Volto ao saudoso escritor que usava o pseudônimo de Barão de Itararé, “ há algo no ar, além dos aviões de carreira”. Talvez, uma vivandeira de toga ou um boquirroto em busca de espaço político.

Há três semanas, quando foi canhestramente defendida a existência constitucional de um Poder Moderador, com possibilidade de intervenções militares, o ministro Gilmar Mendes se autoconvidou para visitar o general comandante do Exército, o supracitado Edson Leal Pujol, que, pelo que se sabe, ouviu e pouco falou. Gilmar, com a sua conhecida fama de “politiqueiro” saiu da visita relatando ter ido entregar a Pujol o seu livro de Direito Constitucional, onde analisara a questão do Poder Moderador, que, como se sabe, foi doutrina desenvolvida pelo político francês Benjamin Constant e para as monarquias constitucionais: o Brasil é uma república desde 1989 e não mais uma monarquia.

Depois da fria recepção, o ministro Gilmar, como informado na Coluna do Estadão de ontem, foi buscar novas companhias: “Gilmar Mendes e os advogados do chamado campo progressista do Direito, muitos próximos ao PT, se reconciliaram publicamente. Em live do Prerrogativas no sábado passado (11/7), integrantes do grupo reconheceram as ‘posições corajosas e contra majoritárias’ do ministro no Supremo”.

A reação do ministério da Defesa e das Forças ficou materializada na mencionada e equilibrada nota acima referida. Falta, no momento, a reação da sociedade e dos representantes do povo, ou seja, o impeachment de Gilmar Mendes.

*Wálter Fanganiello Maierovitch, 73 anos, jurista, presidente e fundador do Instituto Giovanni Falcone de Ciências Criminais, conferencista, professor de Direito, detentor da comenda do Exército Nacional outorgada pelo presidente da República e da medalha do Pacificador, conferida pelo comandante do Exército, oficial R/2 de Infantaria, turma tenente Amaro de 1966 do CPOR-SP.

Estadão.

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