Fortaleza teve, pelo menos, 3,4 mil fiscalizações para cumprimento das regras sanitárias na pandemia

Legenda: Aglomerações registradas na tradicional feira da Rua José Avelino, no Centro da Capital Foto: José Leomar

Na crise da Covid-19, além de garantir assistência adequada aos pacientes, outra necessidade é o cumprimento das normas de saúde. Mas parte da população protagoniza cenas de desrespeitos, como aglomerações e não uso de máscara

A pandemia no Ceará já contaminou mais de 131 mil pessoas e matou mais de 6.400 pacientes. E mesmo com o recuo dos índices em alguns territórios, segue fazendo vítimas. É um período difícil e assustador que, além dos desafios de garantir assistência hospitalar a quem precisa, tem ainda agravantes. A desobediência a regras sanitárias é um deles. Os evidentes estragos causados pela Covid-19 parecem não convencer parte da população. Em Fortaleza, entre maio (quando foi decretado lockdown) e julho (momento da terceira fase da reabertura econômica) foram realizadas, pelo menos, 3.432 ações de fiscalização tanto pela Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), como pela Vigilância Sanitária do Estado, para, dentre outros, dispersar aglomerações, ordenar filas e vistoriar estabelecimentos.

Se no início da pandemia um dos maiores dilemas era convencer as pessoas a, pelo menos, usarem máscaras, hoje, na experiência de reabertura, as cenas de aglomerações se repetem sistematicamente em espaços públicos. Ontem, em mais um episódio de descumprimento do distanciamento social, uma multidão de transeuntes se amontoava na tradicional feira da Rua José Avelino, no Centro. No último fim de semana, trechos da orla de Fortaleza estavam completamente lotados. Na maioria dos casos, predominava o não uso de máscaras de proteção.

Diante da falta de uma vacina, o isolamento social é a melhor forma de frear a propagação da Covid-19. Essa estratégia deve prevalecer mesmo com a redução dos índices relacionados à doença na Capital, enfatizam as autoridades de saúde. No entanto, o cumprimento das regras de distanciamento social foi, e continua sendo, um dilema. Nesse contexto, as ações de monitoramento por parte do Estado, ganharam ainda mais ênfase.

Registro
Legenda: Feira da rua José Avelino, no CentroFoto: José Leomar

A Agefis, entre os dias 8 de maio e 8 de julho, realizou 2.368 ações de monitoramento, dispersões de aglomerações, abordagens a estabelecimentos e ordenamento de filas. Deste total, 89 ações foram em feiras. Outras 460 abordagens resultaram em fechamento dos estabelecimentos por descumprimento das medidas do decreto. O órgão de fiscalização monitora ainda restaurantes e lanchonetes para avaliar a forma de manipulação dos alimentos. Em 65 estabelecimentos verificados, 50 foram notificados e 15 estavam dentro dos padrões higiênico-sanitários exigidos.

Os agentes da Agefis também percorrem supermercados, shoppings, lotéricas e bancos. Nestes últimos lugares, geralmente, encontram outra ameaça: filas enormes e recorrentes. O trabalho que em tempos convencionais já é difícil, pois envolve justamente a necessidade de fazer cumprir regras, na pandemia, tem sido mais complexo.

“Vejo que hoje conseguimos apostar mais na conscientização. Temos evitado simplesmente só realizar um trabalho punitivo. Temos que seguir as leis, claro. Não podemos simplesmente fazer um trabalho educativo porque determinadas leis dizem que temos que punir no primeiro ato. Mas um aprendizado da pandemia é esse trabalho mais educativo”, avalia o superintendente da Agefis, Júlio Santos. Ele explica que houve uma evolução na estratégia e no combate ao descumprimento das normas.

Adaptações

No começo, relata, as pessoas não tinham a consciência de usar máscara. Hoje, segundo ele, esse aspecto já melhorou. No entanto, assegurar o distanciamento ainda é uma necessidade, bem como fazer com que os comércios, sobretudo, do Centro, funcionem somente no horário permitido. “A cada semana, há uma novidade e temos que intensificar a fiscalização a cada novidade da reabertura”.

Outra frente de fiscalização é a Vigilância Sanitária da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). Conforme a Sesa, durante a segunda fase de retomada das atividades econômicas no Estado, foram realizadas 1.064 fiscalizações educativas em Fortaleza. As ações aconteceram em praças de alimentação, shoppings, mercantis e empresas de saúde.

Até o momento, a Sesa interditou 10 estabelecimentos durante as vistorias, sendo cinco na primeira fase e outros cinco na segunda. A técnica da coordenadoria de Vigilância Sanitária da Sesa, Jane Cris Cunha, explica que a interdição é uma medida grave. O último recurso adotado.”Nosso papel é fazer com que as pessoas passem a adotar no dia a dia as ações de prevenção. Então, nesse caso é muito melhor ensinar, orientar, entender as dificuldades das pessoas buscando soluções juntamente com elas do que chegar multando e interditando. Quando a gente conscientiza, percebemos que o resultado é melhor e mais duradouro, que é o que a gente precisa”.

Jane reforça ainda que a falta de consciência e ações imprudentes de parte da população reforçam o risco de transmissão da Covid. “Nós sempre reforçamos que essa doença, ela mata. Não sabemos a gravidade que pode ter em cada um”, ressalta Jane ao explicar como ocorrem as abordagens da Vigilância Sanitária.

Conflitos

No período em que o monitoramento sanitário é imperativo, há quem alegue que medidas de restrição de circulação, por exemplo, conflitam com direitos e liberdades individuais. Segundo a advogada e membro da Comissão de Direito de Saúde da OAB/CE, Daniele Pimentel de Oliveira, a saúde é um direito fundamental social garantido pela Constituição, portanto, ressalta ela, “é um direito coletivo”. Nesse dilema, avalia, não há uma única resposta. Mas, “temos que nos atentar a alguns princípios de ordem constitucional, como o da supremacia do interesse público sobre o privado. Por esse princípio, os governos têm autonomia para aplicar as medidas suficientes e necessárias a assegurar a saúde e o bem-estar de todos, inclusive aquelas relacionadas à prevenção ou enfrentamento de doenças, especialmente em cenário de pandemias”.

Ela também destaca que medidas de caráter restritivo a direitos de liberdade na democracia devem ser exceção, “justificáveis se o objetivo for proteger direitos de maior relevância”. A advogada também reforça que “o direito à saúde visa à garantia e proteção de um direito ainda maior, qual seja, a vida. Pessoas mortas não podem exercer direitos de liberdade. Logo, a restrição temporária do exercício de direitos individuais de liberdade, ainda que de um grande contingente de pessoas, encontra uma justificativa legal”.

Análise

Possíveis motivações do desrespeito ao isolamento

Luciana Quixadá, professora do Curso de Psicologia da Uece e do Programa de Pós-Graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde/UECE e membro do Movimento Cada Vida Importa

Desde o início da pandemia, observamos no Brasil algumas pessoas que não estão seguindo o isolamento social recomendado pela OMS e por comitês científicos. Isso pode ter origens em diversas motivações. Ressalto que as reflexões que trago não dizem respeito àqueles que precisam seguir com suas atividades profissionais por serem essenciais nesse contexto, nem àqueles economicamente desfavoráveis, que não têm condições de moradia digna. 

Podemos compreender esse fenômeno de desobediência a partir de duas hipóteses centrais: a primeira é a existência de funcionamentos subjetivos voltados ao Princípio do Prazer e distanciados do Princípio de Realidade, tal como Freud nomeou. Ou seja, boa parte dos sujeitos no nosso modelo societário estava acostumada a um constante não adiamento das satisfações, em que tudo acontece com base no imediatismo, em uma existência acelerada, desenfreada até. Nisso a gente pode incluir o consumo exacerbado e a fragilidade e superficialidade das relações afetivas, já descritos por tantos teóricos. O isolamento social traz um limite a esse ritmo, a esse excesso e alguns de nós não possui recursos internos para lidar com esse limite abruptamente imposto. 

Assim, portanto, trago a segunda hipótese para essa desobediência civil ao isolamento social, que, em termos psicanalíticos, está relacionada à primeira e que se refere à incapacidade de muitos em lidar com a autoridade. Enfatizo que esta é diferente de autoritarismo. Reconhecer a autoridade é necessário para a harmonia da vida em sociedade, mas sabemos também que a capacidade de questionar normas faz parte do processo evolutivo saudável. 

O desejo nos atravessa, mas espera-se que haja um investimento em direção à vida. O fenômeno que vemos, no entanto, é diferente. É uma subversão que desconsidera dados científicos e põe em risco milhares de vidas. Pode-se dizer que é como um passo à morte. São pessoas que, no seu desenvolvimento psicoafetivo, não conseguiram internalizar de modo satisfatório a lei que barra o desejo, não conseguem desenvolver estratégias saudáveis para tolerar dor e frustração. 

Como agravante, no nosso país, é preciso dizer que há uma grande falha de autoridade quando não há um consenso entre os gestores dessa crise sanitária em todos os níveis. Daí, essa lei, essa recomendação ao isolamento social se fragiliza em ideologias político-partidárias e deixa de exercer seu real propósito que é proteger a vida das pessoas e garantir o controle da disseminação, logo, o fim desse cenário de pandemia entre nós.


Diário do Nordeste.

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