O Brasil tem 47,8 milhões de alunos na educação básica (até o ensino médio), 38,7 milhões no ensino público e 9,1 milhões na rede privada. Com exceção de grande parte das escolas particulares e de poucas redes públicas de ensino, as aulas estão paradas ou ocorrem de forma precária há três meses, desde o início do isolamento, um prejuízo de aprendizagem difícil de calcular e recuperar.
As consequências econômicas desse atraso da formação dos brasileiros também são enormes – economistas estimam que o Brasil pode perder até 23% do PIB nos próximos anos como consequência da redução da capacidade de trabalho desses alunos.
Ainda que a maior parte da oferta do ensino fundamental e médio esteja sob a responsabilidade de estados e municípios, desde o início da pandemia o Ministério da Educação (MEC) tem sido cobrado para criar e coordenar um protocolo eficiente de retorno às aulas, além de uma linha de financiamento para levar tecnologia e outros recursos às regiões mais vulneráveis.
O ex-ministro Abraham Weintraub disponibilizou um curso online de alfabetização, que já estava previsto para ser lançado antes da pandemia, e criou uma plataforma digital para incentivar o ensino superior federal a continuar funcionando – o que foi visto com críticas por grande parte das universidades públicas. Enfrentando críticas pela forma como decidiu gerir o MEC e embates com o Judiciário, Weintraub acabou não organizando nenhum movimento nacional de preparação de retorno às aulas da educação básica em parceria com secretários de educação, conselhos de educação e entidades do setor.
No mesmo dia em que foi anunciado como novo ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli afirmou que a sua principal preocupação nos próximos meses será a retomada do papel articulador do MEC, colocando como prioridade o retorno às aulas, seguindo orientações de autoridades sanitárias, e com a menor perda de aprendizagem possível.
Para isso, na educação básica, especialistas avaliam que o MEC necessita abrandar os ânimos ainda exaltados com a saída de Weintraub (e em dúvidas de como será a gestão de Decotelli) e, em seguida, arregaçar as mangas, fazer um diagnóstico da situação e adotar medidas práticas e eficazes. Entre elas estariam ações de curto prazo, como a elaboração de regras sanitárias escolares para evitar o rebrote da propagação do coronavírus e avaliação do que deve ser exigido do currículo até o fim do ano letivo. Além de outras com resultados a longo prazo, impedindo que a pandemia justifique a continuidade de modelos de educação que não funcionam ou engessem estados e municípios à abertura a boas iniciativas da rede particular de ensino.
Diálogo e mapeamento
Uma das principais dificuldades entre o MEC e as pontas, ou o chão da escola, como costumam dizer alguns educadores, é a de estabelecer diretrizes que consigam alcançar um “Brasil continental”, de forma flexível. O passo elementar ao ministério, avaliam especialistas, seria o de definitivamente assumir seu papel de gestor nacional. Para isso, é preciso diálogo: só assim será possível fazer um diagnóstico preciso da situação e propor soluções para a retomada das aulas, em parceria com estados e municípios. O MEC pode mediar esse processo com um protocolo nacional que permita a flexibilidade dos entes federativos, segundo suas características específicas, mas tentando manter um patamar mínimo de qualidade – procurando que as regiões mais atrasadas se beneficiem, por exemplo, de sistemas bem-sucedidos em outros lugares.
“Por mais que estados e municípios estejam articulando e desenvolvam ações, sem o MEC, toda a estrutura fica [sem equilíbrio]. Temos um tripé. É importante que ele ajude nesse processo de articulação, ouvir, executar e apoiando estados e municípios com maior fragilidade econômica e estrutural”, avalia Luiz Miguel Garcia, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). “Com isso, ele atenderá grandes municípios, com grandes estruturas, mas também oferecerá consultoria técnica, olhar técnico forte para municípios pequenos, que não têm condição de ter esse trabalho”.
Educadores apontam que, até agora, no entanto, a pasta tem deixado muito a desejar nesse sentido. “Conversar é o que precisamos, e é o que não temos”, avalia Ocimar Alavarse, professor na Faculdade de Educação da USP. “Há um processo de enfrentamento, de alinhar quem é a favor ou contra. Eu não estou negando a política, que é espaço de disputa, de adversários, e que não termina com as eleições. E não estou dizendo que o governo deva esconder suas posições. Mas quem estiver ocupando o posto dessa articulação deve reconhecer propostas diferenciadas. Diálogo não significa eliminar diferenças, significa negociação. E é o que não tivemos até agora”, afirma.
Para Alavarse, mapear, neste caso, significa não só ouvir as secretarias estaduais e municipais, mas também as sindicais, dos trabalhadores da educação. “Sabemos que esse problema [de falta de diálogo] não é de agora, não é desse governo, ele está permanentemente colocado no MEC”, afirma. “Sempre destaco que o ministério não tem alunos, praticamente [a maior parte dos alunos da educação básica está matriculada em instituições estaduais e municipais]. Ele tem muito pouco. Em última instância, no entanto, ele é responsável por todos os alunos da educação escolar brasileira. Pode-se dizer que é o município que oferece, mas, em última instância, é o MEC”.
Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Cecília Motta, apesar de reconhecer a autonomia dos entes federativos para administrar suas redes de ensino, espera de Decotelli uma gestão menos engessada e mais orientadora. “Os entes federados têm autonomia nas decisões, nos seus conselhos, mas precisamos de direcionamento nacional. Porque o estudante transita de lá pra cá, daqui pra lá. É preciso direção, não engessada, mas orientativa. É isso que estamos esperando do novo ministro”, afirma.
Calendário e currículo
MEC, estados e municípios têm ainda outras peças a acertar no quebra-cabeça da volta às aulas: o calendário escolar e o currículo. Qual é o conteúdo mínimo a ser exigido? De que forma? Que critérios devem ser adotados para manter os alunos em uma série ou passá-los de ano? Se avançam com deficiências, como sanar essas lacunas no período seguinte?
Com dados concretos recolhidos nesse diálogo com as secretarias de educação, o ministério pode encabeçar a formulação de um calendário nacional e subsidiar decisões acerca de como cumprir o currículo escolar, a realização do Enem e dos vestibulares. Esse calendário, porém, de acordo com Alavarse, deve ser flexível para encaixar as realidades das diferentes regiões do país. Para isso, é preciso também ajudar estados e municípios nos diagnósticos de defasagens de aprendizagem dos alunos.
“Alguns alunos tiveram apoio, alguns não conseguiram acessar o apoio que secretarias desenvolveram ou ainda estão desenvolvendo e outros não tiveram suporte. Retomada significa, entre outras coisas, compromisso em saber como alunos estão em suas aprendizagens, para que retomada seja feita a partir de onde os estudantes estão”, afirma o especialista, da Faculdade de Educação da USP. “Não estarão todos nas mesmas condições”.
Segurança sanitária
Da educação básica à superior, após esse mapeamento será preciso, acima de tudo, garantir condições de segurança sanitária. Especialistas indicam a necessidade de uma parceria intersetorial entre MEC e Ministério da Saúde para testagem em massa e elaboração de estratégias.
“É preciso ter esse quadro, junto com estados e municípios. Saber em quais cidades alunos estão mais, ou menos, contaminados, por exemplo”, afirma Alavarse. “Assim, poderemos ter ideia de onde aulas podem ser retomadas”.
Para Ricardo Cardoso, pró-reitor no Instituto Federal de Minas Gerais e ex-coordenador-geral de Ensino Médio no MEC, o retorno às atividades presenciais deve ser gradual. “Deveríamos ter um número reduzido de estudantes na turma, deveríamos continuar com atividades presenciais e não presenciais”, afirma.
Mais tecnologia e iniciativa privada
A urgência de resolver prejuízos causados à educação durante a pandemia, no entanto, não se resume a “apagar o fogo”. É preciso continuar investindo em mudanças na gestão pública, sobretudo, essas que, caso existissem, poderiam ter minimizado efeitos do isolamento. Essa é a opinião de Fernando Schüler, Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
“O MEC tem que chamar urgentemente os secretários do governo, dar um suporte técnico, fazer um compartilhamento de recursos, uma ação coordenada nacional com uma volta às aulas presencial, dentro das recomendações sanitárias, mas, simultaneamente, deve começar um rápido processo de melhoria de gestão e inclusão digital”, afirma Schüler.
Enquanto a educação privada se adaptou mais rápido ao ensino remoto, mesmo a duras penas, as escolas públicas, com poucas exceções – como em São Paulo, Paraná e Minhas Gerais – demonstraram incapacidade ou morosidade para se adaptarem. Pararam as aulas ou ofertaram conteúdos de forma precária, aumentando ainda mais a desigualdade entre ricos e pobres, avalia o especialista.
“Se a gente realmente quer ter educação básica pautada na equidade, o governo precisa investir maciçamente em equipamentos e acesso à internet. É um dos aspectos fundamentais”, aponta Cardoso. “Poderíamos ter o governo subsidiando a construção de torres de internet onde ela não chega com qualidade; subsidiando a redução de impostos de equipamentos eletrônicos para escolas. E o material humano é mais importante, é preciso formar professores para atuar com essas tecnologias, com as quais não tinham familiaridade”.
Para Schüler, além de mais tecnologia e recursos na escola pública, a pandemia mostrou que o governo deve articular também junto ao Congresso para evitar leis estatizantes. Para ele, cada vez está mais claro que é preciso fomentar a parceria de estados e municípios com a iniciativa privada que funciona, com fiscalização dos resultados, como ocorre com sucesso em outros países e em algumas partes do Brasil – como em Porto Alegre, onde ao invés de escolas públicas, a prefeitura paga ensino particular para as crianças.
Nesse sentido, ele alerta para um ponto na proposta do Fundeb, que tramita no Congresso e pode ser aprovada na euforia de “mais dinheiro para educação” na volta às aulas, por intenções eleitoreiras e corporativas do funcionalismo público, que prevê o uso de 60% dos recursos do fundo para trabalhadores na educação pública, o que ele chama de “Cavalo de Troia estatizante”.
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“A curva demográfica está caindo, menos alunos, menos professores. Se engessarmos na Constituição a destinação de 60% dos recursos do Fundeb para os trabalhadores da educação como querem os sindicatos, para o funcionalismo público, uma proposta corporativista, com a desculpa de ajudar as escolas na pandemia, vamos dificultar o que também está previsto na Constituição e pode ajudar a melhor a educação no Brasil que é estabelecer contratos de gestão mais eficazes; será um retrocesso difícil de consertar”, diz Schüler.
Continuaremos entre os piores do mundo em educação?
Abraham Weintraub acreditava que iria melhorar a educação básica – os estudantes do Brasil estão entre as piores do mundo – começando com uma alfabetização mais eficaz já no primeiro ano do ensino fundamental – segundo o último levantamento feito pelo MEC, 50% das crianças no terceiro ano do ensino fundamental de escolas públicas não estão alfabetizadas.
Em segundo lugar, ele apostava que a criação de mais escolas cívico-militares nos anos finais do ensino fundamental e médio, cujos alunos têm o mesmo desempenho de estudantes de outros países em avaliação internacionais, iria manter a qualidade do ensino por mais tempo para um maior número de alunos (ele tinha como meta implantar 216 instituições desse modelo até 2023). Weintraub também seguia o slogan de campanha “Mais Brasil, menos Brasília” e, por isso, assumia o papel de um MEC mais fiscalizador do que centralizador das políticas adotadas nas regiões. Com o começo da pandemia e a complexidade da volta às aulas, esses projetos serão paralisados? O que fará o novo ministro?
Para além das dificuldades acentuadas pela crise do coronavírus, o professor Ocimar Alavarse, da USP, acredita que será preciso voltar a debruçar-se sobre as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) que, para ele, não estiveram na mesa de discussão do MEC até agora.
“A pandemia se coloca em um primeiro plano, mas não podemos, em nome de enfrentar a pandemia, abandonar uma discussão mais ampla. Esse aspecto de alteração de calendário pode atualizar também determinadas metas que estão no plano”, afirma o docente da USP. “Foi preocupante, até esse momento, quase que um silêncio do MEC em relação ao PNE. A pandemia, por exemplo, acaba até mesmo forçando a discussão do PNE numa visão de conjunto. Não dá para abandonar essa discussão e, do contrário, começar a fazer as coisas por pedaços, iniciativas isoladas”.
Nesse sentido, aponta o presidente da Undime, o novo ministro pode ser um importante incentivador do processo de conjugar as metas da PNA, o que querem estados e municípios e os projetos já iniciados pelo MEC desde o início do governo Bolsonaro. “Ele pode alinhar as equipes do MEC e, no âmbito do governo, buscar recursos para as melhores soluções. Esperamos que a pasta trabalhe conjuntamente, em regime de colaboração, ouvindo sempre municípios e estados, para que, juntos, estruturemos essas políticas e darmos maior velocidade no processo, das concepções até sua execução na ponta e assim, não só minimizar, mas organizar as estruturas de tal forma a conseguirmos melhores resultados lá na frente”.
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