STF ou Forças Armadas? Quem é, de fato, o guardião da Constituição Federal

Papel do Supremo e dos militares é bem claro na Constituição Federal, mas teses golpistas propagadas na internet desinformam e causam confusão.| Foto: Anderson Riedel/PR

Em artigo recente publicado no site do Clube Militar, o major-brigadeiro da reserva Jaime Rodrigues Sanchez define os militares, da ativa e da reserva, como “legítimos guardiões da Constituição Federal” e diz que eles estão “indignados com as recorrentes atitudes lesivas aos interesses do País.”

A afirmação ocorre num momento delicado das relações entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF), que buscam uma pacificação após desentendimentos públicos. Instigados pela postura de enfrentamento do presidente Jair Bolsonaro, ministros da ala militar têm emitido opiniões duras contra pareceres do STF que afetam o governo e até contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que pode julgar a cassação da chapa que elegeu Bolsonaro em 2018.

Esse antagonismo entre militares e juízes traz de volta uma antiga rivalidade sobre quem é o verdadeiro guardião da Constituição, responsável por fazer valer os direitos e deveres previstos na carta. O artigo 102 do texto constitucional de 1988 é claro ao dizer que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. O órgão máximo do pode Judiciário no país é, portanto, a instância adequada para fiscalizar, orientar e dirimir dúvidas sobre o cumprimento dos 250 artigos da carta magna brasileira. É uma prerrogativa do STF, ainda, atuar como mediador de conflitos entre a União e as unidades da federação.

Muitos militares que defendem Bolsonaro, porém, têm contestado o papel da Suprema Corte e falam abertamente em hipóteses como a de uma “intervenção militar constitucional” e a da aplicação do artigo 142 da Constituição, que supostamente daria ao presidente poderes para acionar as Forças Armadas contra o Congresso Nacional e o STF. As duas ideias são rechaçadas por membros do meio jurídico, que criticam ainda o que consideram uma escalada de autoritarismo por parte de Bolsonaro e seus aliados.

Constituição confere aos militares o papel de “poder moderador”?

No dia 21 de maio, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) disse na tribuna da Câmara que a Constituição previa para as Forças Armadas a função de “poder moderador” entre os poderes. A parlamentar declarou que cidadãos “não veem outra solução” que não pedir ao presidente Jair Bolsonaro o emprego do artigo 142″da Constituição.

O artigo em questão aborda as atribuições das Forças Armadas que, entre outros, destina-se “à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais”. O trecho é costumeiramente citado por bolsonaristas por causa de duas frases de sua redação: uma, quando descreve que as Forças estão “sob a autoridade suprema do Presidente da República” e a outra, é a que elas podem ser acionadas para a garantia “da lei e da ordem”. Segundo esta argumentação, Bolsonaro poderia recorrer aos militares para “resolver” uma suposta sabotagem que os outros poderes estariam fazendo contra seu governo.

Apoiador do presidente, o pastor Silas Malafaia pediu a intervenção das Forças Armadas contra o ministro Alexandre de Moraes: “Artigo 142 da CF contra esse absurdo”, escreveu na terça-feira (16). Nas redes sociais, é comum que partidários de Bolsonaro façam críticas a ele e à cúpula das Forças por uma suposta “omissão”, já que não houve um “acionamento” dos militares contra os representantes dos outros poderes.

O major-brigadeiro Rodrigues Sanchez, que defende uma atuação direta das Forças Armadas na vida política do país, escreveu recentemente que “o estado de coisas está se encaminhando para uma situação onde só as FFAA poderão mais uma vez salvar o país” — a outra ocasião que o Brasil foi “salvo” pelas Forças Armadas, segundo ele, foi na execução do golpe de 1964, que implantou a ditadura que vigorou até 1985. E ainda no ano passado, o militar cunhou uma metáfora que passaria a empregar em outras situações: a de que Bolsonaro estaria sendo ameaçado por uma “sucuri de duas cabeças”, que seriam o Congresso Nacional e o STF.

Meio jurídico rechaça “intervenção constitucional” e “aplicação” do artigo 142

Quando a deputada Bia Kicis discursou sobre o artigo 142, ela citou um posicionamento do jurista Ives Gandra Martins. A fala do advogado foi também mencionada em um vídeo que o próprio presidente Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais.

A defesa que Gandra Martins fez das Forças Armadas como um “poder moderador” não encontra, entretanto, muito eco na comunidade jurídica. Ao contrário: nas últimas semanas, diferentes juristas e entidades publicaram manifestações em rejeição à hipótese.

Uma delas é do ministro Luiz Fux, futuro presidente do STF. O magistrado assinou uma liminar no dia 12 de junho em que definiu as Forças Armadas como uma instituição de Estado, não de governo, “indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político”. No texto, Fux apontou ainda que a “autoridade suprema” que a Constituição prevê que o presidente da República tem sobre as Forças Armadas não garante ao chefe do Executivo a possibilidade de utilizá-las para intervir sobre outros poderes.

No início do mês, a Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados produziu um parecer de interpretação do artigo 142 em que também descartou que o texto sugira a possibilidade de uma intervenção militar com respaldo legal. “O art. 142 da Constituição não autoriza a realização de uma ‘intervenção militar constitucional’, ainda que de caráter pontual”, diz um trecho do parecer.

Em outro, é citado: “A ‘autoridade suprema’ do Presidente da República em relação às Forças Armadas significa simplesmente que a direção do chefe do Poder Executivo não pode ser contrastada por qualquer autoridade militar, o que mais uma vez revela a prevalência do poder civil”. “Nenhum dispositivo constitucional e legal faz qualquer referência à suposta atribuição das Forças Armadas para o arbitramento de conflitos entre os poderes”, destaca a peça.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fez, também em junho, um documento com o mesmo teor. No texto, a instituição cita que o “poder moderador” existiu no Brasil apenas durante o Império (extinto em 1889) e que a Constituição “não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade”.

O parecer faz ainda uma menção elogiosa ao trabalho dos militares: “Interpretar as funções e as competências das Forças Armadas dentro dos marcos democráticos e do império da lei é postura que somente valoriza a importante missão constitucional que desempenham. E é postura compartilhada pela expressiva maioria dos integrantes das três Forças, que mantêm inabalável compromisso com a legalidade e rechaçam os discursos de intervenção militar”.

No Twitter, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso arrematou a questão, alegando que o artigo 142 nada tem a ver com “intervenção militar”. E ele falou com propriedade e conhecimento de causa. “O art 142 da Constituição é de redação minha e do sen Richa. Qualquer dos 3 poderes pode requerer as FFAA na defesa da Constituição e da ordem. Nada a ver com tutela, moderação ou intervenção militar. Os 3 poderes são independentes e harmônicos, regulados pela Constituição. E só”, escreveu, fazendo menção ao ex-senador e ex-governador do Paraná José Richa.

Durante a ditadura, militares e STF viveram paz e conflitos

A ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985 promoveu prisões políticas, cassou liberdades individuais e, por três ocasiões, fechou o Congresso Nacional. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, não teve suas atividades interrompidas à época do regime militar.

No artigo “Entre o dever da toga e o apoio à farda: independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar”, o jurista Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho relata que o relacionamento entre a Corte e os militares foi caracterizado por momentos distintos durante os 20 anos da ditadura.

Inicialmente, segundo Carvalho, houve apoio: os membros do Supremo viam como positiva a ação dos militares. Poucos dias após o golpe, o presidente da República, Castello Branco, visitou o STF e lá foi recebido pelo presidente do tribunal, Álvaro Ribeiro da Costa, que em discurso disse compreender o “sacrifício provisório” de algumas garantias constitucionais. Além de a Corte não ter sido fechada, nenhum de seus membros foi afastado.

A fase de maior harmonia entre a cúpula do Judiciário e os militares perdurou até a promulgação do Ato Institucional nº 2 (AI-2). A norma, entre outras medidas, elevou de 11 para 16 o número de ministros do tribunal. Com isso, ampliou a presença de magistrados que estavam sob influência dos militares, o que motivou a contrariedade dos demais. Houve ainda execuções de aposentadoria compulsória de ministros. A partir daí, instalou-se um período de turbulência que se acentuou até pouco após a promulgação do AI-5, a medida mais autoritária da ditadura que, entre outros, cassou o instrumento do habeas corpus.

O terceiro estágio da relação entre STF e regime militar, segundo Carvalho, se deu após a consolidação dos efeitos do AI-5 e perdurou até o início da reabertura democrática. Neste período, segundo o jurista, a Suprema Corte tinha uma composição mais alinhada com o Executivo e, por isso, os conflitos eram menores.

Gilmar Mendes se encontra com chefe do Exército

Um encontro reservado ocorrido na quarta-feira, 10 de junho, ilustra bem essa permanente tensão sobre quem tem a prerrogativa de manter a guarda da Constituição Federal. Segundo a revista Veja, o ministro do STF Gilmar Mendes fez uma visita ao general Edson Leal Pujol, comandante do Exército. Oficialmente, o objetivo foi entregar a nova edição do livro do magistrado, “Curso de Direito Constitucional”, mas o ministro aproveitou a oportunidade para medir a temperatura na caserna e desfazer qualquer mal entendido entre os poderes Executivo e Judiciário.

De acordo com o jornal O Estado de São Paulo, Gilmar indicou que o Supremo não tem intenção de interromper o mandato de Bolsonaro e garantiu que muitas avaliações sobre o comportamento dos magistrados não passam de teorias conspiratórias. Nas palavras do ministro do STF, a preocupação na Corte é com as mensagens “dúbias” de Bolsonaro em relação à democracia, e também com a insistência dele em sugerir que as Forças Armadas estariam com o governo numa possível ruptura institucional. A ideia de que os militares podem fechar o STF e o Congresso foi classificada pelo magistrado como “incompatível” com a Constituição de 1988.

Segundo a reportagem da Veja, Pujol se alinhou à interpretação da caserna de que o Judiciário tem extrapolado em suas funções. Decisões recentes, como a que vetou o nome do delegado Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, e a que conferiu a estados e municípios — e não ao presidente da República — o poder de decidir sobre políticas relacionadas ao novo coronavírus não foram bem recebidas. Mas Gilmar tratou de explicar cada decisão, com fundamentos jurídicos e previsões legais na Constituição.

Ainda assim, Pujol mais ouviu do que falou no encontro e sinalizou que não aceita o papel de interlocutor político da caserna ou do governo com o Judiciário, que era do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. O ministro teria perdido esse papel ao assinar notas conjuntas com Bolsonaro sobre o papel das Forças Armadas na atual crise política.

Planalto ajudou a bloquear CPI contra o Judiciário

Citado no início desta reportagem, o major-brigadeiro da reserva Jaime Rodrigues Sanchez é coautor, ao lado de outros mais de 100 integrantes das Forças Armadas, de uma carta direcionada ao ministro do STF Celso de Mello, divulgada no dia 13 de junho.

No texto é dito, entre outros apontamentos, que “ninguém ingressa nas Forças Armadas por apadrinhamento. Nenhum militar galga todos os postos da carreira, porque fez uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”. As frases são críticas ao modo de seleção dos ministros do STF e também a uma suposta linguagem inacessível dos membros da Corte.

A composição do STF é frequentemente contestada por bolsonaristas. Ainda na campanha de 2018, Bolsonaro propôs elevar o número de ministros da Corte de 11 para 21. A justificativa apresentada era a de que a expansão o possibilitaria colocar “10 isentos” no tribunal. Outra ação contrária à formação do tribunal é a tentativa de “revogar a PEC da bengala”, proposta por Bia Kicis. A iniciativa da parlamentar visa retomar para 70 anos a idade da aposentadoria compulsória dos membros da STF. Com isso, Bolsonaro passaria a ter a possibilidade de integrar mais integrantes à corte em seu mandato.

O trabalho do STF não esteve na mira apenas de bolsonaristas. Especialmente no ano passado, membros do Congresso Nacional lideraram uma ofensiva contra a Corte. Houve uma tentativa de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado para investigar supostas irregularidades no Judiciário. A possível CPI foi apelidada de “Lava Toga”, numa referência à operação Lava Jato.

A proposta acabou não se efetivando, graças ironicamente a um movimento do Palácio do Planalto, que tentava manter um bom diálogo com o Supremo.

Tentativa de selar a paz ou outra mensagem dúbia?

O governo emitiu dois sinais contraditórios em direção ao Supremo na última sexta-feira (19). Em seu perfil no Twitter, o presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar a Corte por conta de sua decisão que garantiu a estados e municípios a autonomia para tratar das políticas de isolamento social.

Na mesma data, três ministros de seu governo se encontraram com um integrante do STF. Os ministros Jorge de Oliveira (Secretaria-Geral), André Mendonça (Justiça) e José Levi do Amaral (Advocacia Geral da União) estiveram com o ministro Alexandre de Moraes. A pauta formal incluiu temas como desarmamento e terras indígenas, mas houve também a tentativa de relaxar as tensões entre Executivo e Judiciário. Moraes ouviu deles que Bolsonaro quer mudar a relação com o STF.

Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, Bolsonaro estaria de olho em uma aproximação com o ministro Luiz Fux, que deverá assumir a presidência do STF em setembro. O Palácio do Planalto entende que o crescente acirramento com a Corte não é positivo e que um freio nas tensões seria um movimento acertado.

A exoneração de Abraham Weintraub do Ministério da Educação faz parte deste processo. O agora ex-ministro desagradou a elite do Judiciário quando foi tornada pública sua fala na reunião ministerial de 22 de abril, em que disse que “vagabundos” do STF deveriam ir para a cadeia.

Choques entre os poderes têm sido frequentes desde o início da gestão Bolsonaro e, em relação ao STF, se acentuaram nos tempos recentes, em especial após a intensificação do inquérito das fake news e no combate às chamadas manifestações antidemocráticas. Ambas as investigações tem como foco apoiadores bolsonaristas.

Um movimento de pacificação entre Executivo e Judiciário encontraria, porém, dificuldade para se reproduzir entre as bases, inflamadas por discursos do próprio presidente e de ministros palacianos.

Para lembrar alguns, Bolsonaro disse recentemente que s Forças Armadas “não cumprem ordens absurdas” e “não aceitam julgamentos políticos” do STF; o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, disse que não há risco de golpe no país, mas que a oposição não pode “esticar a corda”; e outro ministro, Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, afirmou que “consequências imprevisíveis” podem vir caso o Supremo apreenda o celular de Bolsonaro, no que foi entendido como uma ameaça de golpe. Aliás, a hipótese de apreender o telefone foi descartada pela própria Corte.

Gazeta do Povo

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