Quando analisamos o mundo, é importante deixarmos de lado visões ou opiniões simplórias, bem como doutrinas e ideologias, que porventura possamos carregar conosco, quer por hábito, quer por convicção.
O mundo que habitamos é um lugar relativamente complexo; portanto, é fundamental deixarmos de lado todas e quaisquer simplificações, pelo simples fato de que elas não contribuem em nada para que obtenhamos um entendimento pragmático da realidade.
Até porque, ao estudarmos a economia de um país como a China, por exemplo, vamos perceber que trata-se um sistema misto, que incorpora tanto elementos capitalistas quanto socialistas.
Alguns partidários e simpatizantes da ideologia socialista por exemplo, afirmam que a China é efetivamente um país socialista; e que sua colossal revitalização industrial, desempenho no mercado internacional e robusto desenvolvimento econômico são provas irrefutáveis disso.
Muitos outros socialistas, no entanto, descartam completamente essa possibilidade, afirmando que a China não é um país socialista, pois seu capitalismo de consumo de massa é muito evidente.
Mas quem realmente está certo?
A China é um país socialista ou um país capitalista?
Quem pode responder?
Uma coisa é certa: o fantástico desenvolvimento da China só foi possível depois que Mao Tsé-tung — o ditador comunista que governou o país com tirânica brutalidade por mais de duas décadas e meia, de 1949 a 1976 — morreu, e ele foi substituído pelo benévolo e pragmático Deng Xiaoping.
Com Deng Xiaoping, os chineses tinham uma grande vantagem, pois ele era um indivíduo de natureza mais flexível, nenhum pouco afeito a ideologias. Ele estava disposto a implementar políticas que produzissem resultados práticos. Se para isso, ele tivesse que conduzir a China para patamares mais capitalistas, ele o faria sem problema nenhum.
Ao passo que no período maoísta a China não possuía nenhum nível de liberdade econômica — afinal, sendo uma ditadura totalitária marxista-leninista, tudo dependia do inflexível sistema de planejamento central — Deng Xiaoping introduziu reformas que gradualmente tornaram a economia chinesa receptiva ao capitalismo, e a todos os seus elementos inerentes, como empreendedorismo, livre iniciativa e liberdade de investimento. De forma gradativa, portanto, a economia chinesa foi ficando mais forte, à medida que uma economia de mercado progressivamente se estabelecia, e substituía o rígido sistema de controle e planejamento central, que tanta mortandade e comiseração causou aos chineses.
Fazendo esta análise histórica, portanto, torna-se evidente que o elemento que realmente contribuiu para o desenvolvimento da China foi o capitalismo, e não o socialismo. No dramático e conturbado período em foi uma ditadura comunista, a China sofreu com exacerbado autoritarismo político, tirania estatal, brutalidade governamental e grave escassez de alimentos, como a que ocorreu durante a Grande Fome da China, que matou milhões de chineses de inanição; isso para não falar de muitas outras catástrofes e desgraças — como a Revolução Cultural — que frequentemente descarrilhavam para periódicos e agressivos episódios de repressão estatal.
Foi, portanto, a abertura da economia para o capitalismo que permitiu à China desenvolver-se, modernizar-se e sair do deplorável antro de sofreguidão, estagnação e miséria absoluta que foram recorrentes durante o período maoísta.
Não obstante, ao passo que a economia da China se desenvolveu de forma inquestionável, o tipo de capitalismo que nela prevalece está longe de ser classificado como o tradicional capitalismo de livre mercado, em decorrência do alarmante nível de intervenção estatal que existe na economia (embora exista mais liberdade econômica na China do que no Brasil); de modo que podemos ainda — em pleno século 21 —, falar de um sistema de planejamento central na China, embora este seja muito diferente do que era na época de Mao.
Para todos os efeitos, a China continua sendo uma ditadura; um regime totalitário de partido único, onde tudo é planejado, decidido e controlado pelo Partido Comunista Chinês. Uma ditadura que se torna cada dia mais autocrática, inflexível e brutal, para infortúnio dos chineses.
A partir do governo de Deng Xiaoping, a China passou a incorporar o capitalismo em seu sistema econômico, mas o ferrenho autoritarismo político nunca desapareceu. Um caminho muito similar tomou o Vietnã, pelo fim dos anos 1990 e princípio dos anos 2000.
Tendo sido uma ditadura totalitária comunista, este pequeno país do sudeste asiático invariavelmente atingiu um nível de miséria e estagnação sem precedentes na sua história; por essa razão, seus dirigentes políticos se viram obrigados a reincorporar o capitalismo ao seu sistema econômico.
Por serem regimes totalitários — adaptados a um sistema de planejamento central — os governos tanto da China quanto do Vietnã passaram a vislumbrar enormes possibilidades de aquisição e expansão de poder, ao descobrirem a poderosa ferramenta econômica que é o capitalismo.
Por isso, passaram a explorar ativamente um capitalismo paralelo, sem lastro, de teor puramente artificial, que passou a arregimentar ainda mais poder para o governo, os planejadores centrais e seus associados.
Com a implementação de um sistema de bancos centrais e expansão de crédito, seus proponentes perceberam que não haveria limites para o que o governo poderia ou não fazer (ou assim eles pensavam). Esse capitalismo desenfreado impulsionado exclusivamente por faraônicas obras governamentais ficou conhecido como capitalismo de estado.
O governo chinês é muito bem conhecido por suas monumentais obras faraônicas, que apesar de contraproducentes, constituem uma expressiva parcela do PIB. Já é extensamente documentado, por exemplo, o fato de que em apenas três anos — de 2011 a 2014 — a China consumiu mais concreto do que os Estados Unidos em todo o século 20.
Há décadas, o governo constrói inúmeras cidades, que em sua grande maioria permanecem vazias e desabitadas. Isso deu origem ao moderno fenômeno das cidades fantasmas da China. As poucas cidades que conseguem ter algum vislumbre de presença humana não chegam nem perto de atingir sua capacidade de ocupação total.
A cidade de Kangabashi, por exemplo, com capacidade para trezentas mil pessoas, tem uma população total estimada entre vinte mil e trinta mil residentes. A cidade de Tianduncheng, com capacidade para abrigar cem mil pessoas, tem aproximadamente dois mil habitantes.
Toda essas construções desenfreadas acabaram gerando um déficit orçamentário tão imensurável quanto a megalomania governamental. A China hoje tem uma das maiores dívidas públicas da história, e uma bolha financeira prestes a estourar. Com sessenta e quatro milhões de apartamentos vazios, o que o futuro reserva para a China é possivelmente a maior crise imobiliária da história mundial.
Todos esses problemas são resultado do sistema de planejamento central. Eles não foram causados pelo povo da China, mas pelo governo chinês. E aí está a raiz do problema. Um governo jamais estabelece limites para as suas próprias atividades; com uma capacidade ilimitada de criar e expandir crédito a partir do nada, e que será infinita — ao menos assim pensam os planejadores centrais —, por que, afinal, o governo deveria impor restrições a si próprio?
Não obstante, não apenas poderia, como deveria. Esta ausência de comedimento e restrições do estado na área econômica é o que vai fazer a China soçobrar financeiramente muito em breve, sem dúvida nenhuma levando uma boa parte do mundo junto.
O que os dirigentes políticos e os planejadores centrais da China e do Vietnã descobriram com a reintrodução do capitalismo no sistema econômico dos seus respectivos países é que ele poderia ser usado para conferir longevidade ao seus regimes.
Eles não só não precisavam abandonar o socialismo — de fato não o fizeram —, como poderiam utilizar o capitalismo de estado para financiar qualquer projeto que julgassem fundamental para os seus objetivos: expandir o socialismo de estado, financiar projetos governamentais, monopolizar operações monetárias, incorporar dividendos estrangeiros, acumular extensões de crédito e receita, entre muitos outros artifícios, que acabariam gerando ainda mais poder para todos os integrantes da máquina governamental.
Porque, de um jeito ou de outro, não sendo orgânico, diluído e eficazmente produtivo como o capitalismo de livre mercado, é para arregimentar poder e influência que o capitalismo de estado existe.
Portanto, podemos dizer, sem nenhum equívoco, que na China — assim como também no Vietnã, embora em um grau um pouco menor — o governo desenvolveu um parasitário e substancial capitalismo de estado, que foi colocado a serviço do socialismo político.
Tudo para arregimentar poder, controle, commodities e influência nas mãos dos planejadores centrais. De uma maneira muito irônica, podemos dizer que o socialismo sobrevive, deveras, se torna a cada dia mais forte, e isso não apenas na China, graças a uma modalidade muito peculiar de capitalismo: o cínico e oportunista capitalismo de estado.
Wagner Hertzog
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