Derrubar estátuas é uma forma de apagar o passado e esquecer a história. Os manifestantes que, nas últimas semanas, passaram a destruir monumentos históricos, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, sabem disso muito bem. O que eles talvez não imaginem é que esse tipo de violência não tem nada de inédito. Foi colocado em prática décadas antes, na China de 1966.
O episódio ficou conhecido como Revolução Cultural – apelido dado pelo líder do país, Mao Tsé-Tung. Em todo o território chinês, grupos de jovens militantes armados saíram às ruas para derrubar estátuas, saquear bibliotecas, queimar livros em praça pública e, assim, tentar eliminar o passado recente.
No lugar de obras de arte acumuladas ao longo de milênios, os chineses comuns se viram obrigados a carregar pôsteres e broches de Mao, além do Livro Vermelho com as citações do ditador. Escolas e faculdades foram fechadas e os milicianos que, estimulados pelo ditador, se organizavam em células rebeldes espalhadas por todo o país e se autodenominavam guardas vermelhos, passaram a perseguir e agredir seus professores.
Casas foram invadidas e depredadas. Edifícios considerados referências arquitetônicas acabaram depredados. Dos 6.843 monumentos que havia em Pequim em 1958, 4.922 foram destruídos ou danificados. Intelectuais, escritores, jornalistas, atores, bailarinos passaram a ser levados para praças públicas, onde lhes eram penduradas placas com insultos – com frequência, eles eram espancados até a morte. Os casos de suicídio dispararam.
Mães perseguidas
Para evitar a perseguição e ganhar crédito junto ao Partido Comunista, muitas pessoas passaram a delatar familiares ou conhecidos. Jovens eram incentivados a denunciar seus familiares – foi o que fez Zhang Hongbing, de 16 anos, que entregou a própria mãe ao deixar um bilhete na porta de um guarda, acusando-a de criticar a revolução cultural.
Ela foi espancada até perder a vida. Hoje, Zhang é um advogado arrependido do ato. Ele lembra até hoje de uma canção, muito repetida na época, que dizia: “Papai e mamãe são queridos, mas o líder Mao é mais querido”.
“Nós viajámos cerca de 3 mil quilômetros nessa excursão. Visitamos a velha casa de Mao, que tinha sido transformada num museu-santuário”, relatou Jung Chang no livro “Cisnes Selvagens“. Funcionários dedicados do partido, tanto o pai quanto a mãe de Jung Chang acabaram perseguidos e forçados a participar das chamadas “assembleias de denúncia”, quando pessoas inocentes eram obrigadas a confessar em voz alta as acusações que lhes haviam sido feitas.
Ainda assim, a menina se tornou uma guarda vermelha, ainda que algumas dúvidas a atormentassem. A casa onde Mao passou a infância, prossegue ela, “era mais ou menos grandiosa – muito diferente de minha ideia de uma cabana de camponeses explorados que eu esperava que fosse. Uma legenda embaixo de uma enorme foto da mãe de Mao dizia que ela fora uma pessoa muito bondosa e, como sua família era relativamente rica, muitas vezes dera comida aos pobres”.
Foi quando ela percebeu que os pais do grande líder tinham sido camponeses ricos. “Mas os camponeses ricos eram inimigos de classe! Por que os pais do presidente Mao eram heróis, quando outros inimigos de classe eram objeto de ódio? A pergunta me assustou tanto que a eliminei imediatamente.”
Mas, afinal, qual era o passado que os seguidores de Mao precisavam tanto esconder?
Fome e violência
Em 1958, o governo chinês deu início a um amplo processo de reorganização da produção agrícola. Sem levar em consideração as características do solo de cada região, Mao determinou a realocação de culturas inteiras. Em boa parte dos casos, as plantas simplesmente não cresciam.
Resultado: 45 milhões de mortes em quatro anos, na estimativa do historiador Frank Dikötter, até que o Grande Salto Adiante fosse abandonado, em 1962. O hábito chinês de comer de tudo, incluindo animais silvestres e insetos, foi largamente ampliado durante esse período de grande fome.
Nessa época, um terço de todas as casas da China foi destruído. Uma criança que roubasse uma simples batata era condenada a ser amarrada pelos próprios pais e depois jogada num rio para morrer afogada. Os idosos e os doentes se viam expulsos das fazendas coletivas e abandonados à própria sorte.
Acontece que o prestígio de Mao junto ao Partido Comunista havia despencado diante do fiasco da iniciativa. O líder então resolveu, em maio de 1966, criar o Grupo da Revolução Cultural. Se o Grande Salto previa a reorganização total da economia, a Revolução Cultural visava zerar a cultura, os hábitos e as tradições de um país cuja população, na época, estava em 665,8 milhões de pessoas.
Baseada na ideia paranoica de que o Grande Salto havia fracassado como resultado da ação de espiões inimigos burgueses e capitalistas infiltrados em todas as empresas, fazendas e instalações governamentais, a Revolução Cultural deu a Mao carta branca para continuar agindo, sem questionamentos. Não se sabe exatamente quantas pessoas foram vítimas da perseguição. As estimativas mais pessimistas chegam a 20 milhões de mortos.
A violência durou até que a morte do líder, em 1976. Ainda foram necessários alguns anos para desmantelar todas as células de militantes, que ainda mantinham o costume de perseguir inocentes. Em 1981, o Partido Comunista decretou que a Revolução Cultural havia sido um erro e a viúva do antigo líder, Jiang Qing, acabou condenada à prisão perpétua. Ela cometeria suicídio em 1991.
Apesar de toda a autocrítica, em 2007 o partido fez vistas grossas para a construção de uma estátua em Changsha, em homenagem a Mao. A obra tem 32 metros de altura, foi erguida utilizando 800 toneladas de granito e exibe o líder ainda jovem, com cabelos esvoaçantes.
Be the first to comment on "Como os protestos atuais repetem a violenta estratégia maoísta de apagar a história"