Desde meados de março de 2020, quando a pandemia de Covid-19 chegou com força ao Brasil, governadores e prefeitos têm adotado medidas que, em situação normal, seriam consideradas flagrantemente autoritárias. No dia 10 de abril, por exemplo, o prefeito de Sobral, no Ceará, simplesmente confiscou por decreto uma fábrica de lingeries a fim de usar as instalações para a fabricação de máscaras. Já em maio, e também por decreto, a prefeitura de Teresópolis, no Rio de Janeiro, instituiu um rodízio de pessoas pelo número de CPF.
Não consta que essas medidas para lá de heterodoxas tenham surtido qualquer efeito na contenção do vírus ou na redução das mortes pela doença. E se ilude quem acha que esse é o verdadeiro objetivo dos decretos autoritários. Como disse o médico inglês Theodore Dalrymple em entrevista à Gazeta do Povo, “políticos precisam ser vistos fazendo algo, mesmo sem saber se o que eles estão fazendo vai ter qualquer efeito benéfico”.
Agora a sanha autoritária, antes restrita a governadores e principalmente a prefeitos despreparados, todos no furor de agir em nome da ciência, chegou ao Congresso nacional. Na noite de terça (9), a Câmara dos Deputados aprovou uma versão alterada pelo Senado do PL 1562/2020, apresentado pelo deputado Pedro Lucas Fernandes (PTB-MA), que trata da obrigatoriedade do uso de máscaras por toda a população.
Detalhe perigoso
A rigor, não há nada de mais no projeto de lei. Lá estão as medidas questionáveis de sempre, as boas intenções de sempre, as palavras vagas de sempre. Tudo parece seguir o roteiro sugerido por Dalrymple de um político tentando chamar a atenção – porque é isso o que se espera dele. O problema é que, ao sofrer alterações do Senado, o projeto agora à espera de sanção presidencial ganhou uma nova redação que, interpretada friamente, permite que os agentes fiscalizadores invadam as casas das pessoas a fim de garantir que estejam todos devidamente mascarados.
O detalhe está no item III do Artigo 3º A, que diz que o uso de máscaras será obrigatório em “estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que (sic) haja reunião de pessoas” (grifos meus). Como a linguagem da lei é vaga, pode-se interpretar como um “local fechado onde há reunião de pessoas” a casa de cada um de nós. O que é uma violação clara do princípio da inviolabilidade do lar, que consta no artigo 5º, inciso XI da Constituição de 1988 e que diz “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
“Não acho que tenha sido a intenção [permitir que os fiscais invadam a casa das pessoas] e nem acho que vamos chegar a esse ponto, mas não podemos dar margem para isso”, disse o deputado Paulo Gamine (NOVO-RJ). Foi o próprio Gamine quem alertou para o caráter abusivo da lei. “Aprovado PL q obriga uso de máscara com mudança absurda do Senado q permite quebra da inviolabilidade de domicílio privado p/ fiscalizar se q vc e suas visitas estão de máscara. Operação da Polícia na favela não pode, mas entrar na sua casa para ver se vc está de máscara pode”, escreveu ele num tuíte que terminava com o emoji de “tapa na testa”.
O responsável pelas mudanças feitas no projeto de lei é o senador Paulo Paim (PT-RS). Mas também apresentaram emendas doze outros senadores. Em parecer relatado pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN), lê-se: “No tocante à constitucionalidade material, de forma geral, a obrigatoriedade do uso de máscaras não enfrenta obstáculos jurídicos, mostrando-se restrição legítima ao direito de liberdade (art. 5º, caput e inciso II, da CF)”.
Procurado para comentar a alteração em seu projeto original, o deputado Pedro Lucas Fernandes não respondeu aos pedidos de entrevista.
Populismo “do bem”
Ao que parece, a pandemia de coronavírus atiçou mesmo a sanha legisladora de nossos deputados e senadores. Ainda em abril, o Senado aprovou o projeto de lei 1179/2020 de autoria do senador Antônio Anastasia (PSD-MG) que prevê, entre outras coisas, a proibição de concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo até 30 de outubro de 2020. Mas a medida era para ser ainda mais lesiva aos donos de imóveis, uma vez que o texto original previa a possibilidade de o inquilino deixar de pagar o aluguel se tivesse sua renda afetada pela pandemia. Coube à relatora Simone Tebet (MDB-MT) tirar isso do texto final.
O texto aprovado, cujo prazo para sanção ou veto presidencial vence hoje (10), prevê ainda a proibição de multas de trânsito por excesso de peso (a consequência disso para as estradas e ruas do país ainda é uma incógnita), a suspensão do “direito ao arrependimento” nas entregas de comida ou medicamentos, e a proibição da realização de reuniões e festas nos condomínios.
A cereja do bolo é uma emenda do senador Fabiano Contarato (Rede-ES) que prevê a redução em 15% da taxa que os motoristas de aplicativos pagam às empresas. O senador justificou a medida com uma pergunta: “Será que elas [as grandes corporações] não podem reduzir um pouco o ganho?”.
A boa notícia é que todas essas medidas têm prazo para caducar: 30 de outubro de 2020. A não ser que a pandemia perdure. Ou que os legisladores peguem o gosto por se intrometer na vida das pessoas e empresas.
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