Embriagados pelo poder, acima do bem e do mal: nossos ídolos humanos

A falta de compaixão dos principais líderes políticos do Brasil num dos dias mais trágicos da nossa história demonstra que eles se consideram acima dos demais cidadãos.

“Quase todos os homens são capazes de suportar adversidades mas, se quiser pôr à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder.”, disse Abraham Lincoln em frase que se tornou emblemática. Ontem tivemos o gosto amargo das apostas que fizemos em sempre dar poder demais e de forma messiânica a governantes. Em um dia trágico para nós, cidadãos brasileiros, triste para todos os patriotas, entendemos que nossos poderosos realmente assimilaram que estão acima de nós.

Seja à esquerda ou à direita, o Brasil não constrói líderes políticos. Uma nação infantil, que reivindica o Estado-babá como mediador de todo e qualquer conflito da sociedade civil, que trata como decentes adultos que se eximem de responsabilidades, busca pais e salvadores, não líderes. Líderes são cobrados, têm de apresentar propostas, falham, reparam erros e, sobretudo, respeitam seus liderados como iguais. Nós nos deixamos desrespeitar por quem tem a caneta e até por quem nem tem mais e já foi até para a cadeia.

Ontem, 19 de maio, o Brasil viveu um de seus dias mais trágicos: perdemos 1179 cidadãos para o coronavírus. As duas lideranças políticas mais cultuadas por suas bases no Brasil atual parecem ter tirado o dia para espezinhar. Um achou bom o vírus, o outro achou bom contar piada. Onde erramos?

Vamos contextualizar a dimensão do dia de ontem. É natural que, até por sobrevivência psicológica, tenhamos anestesiado o tamanho da catástrofe que vivemos. Mas é necessário deixar esse ponto claro para que julguemos a qualidade do caráter dos líderes que escolhemos e que boa parte da sociedade continua defendendo com unhas e dentes, não como políticos, mas como ídolos inquestionáveis, popstars, deuses.

Trago aqui a conta que Antonio Tabet postou no Twitter. As perdas para o coronavírus ontem, só ontem, são a soma das vidas perdidas em: Brumadinho, Boate Kiss, Vôo da Air France, Acidente da TAM, Carandiru, Vôo da Chapecoense, Explosão no Osasco Plaza Shopping, Incêndio no Ninho do Urubu e Chacina da Candelária.

É absolutamente indefensável o ex-presidente Lula ter dito ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus. Em qualquer dia seria indefensável, neste dia específico, diante da dor de tantos cidadãos brasileiros, é difícil até classificar o teor da fala. Mas não se iluda, os que participam do culto à personalidade de Lula argumentam que ela foi descontextualizada pela imprensa golpista. Sério? Vamos ao inteiro teor do que o ex-presidente disse ao jornalista Mino Carta.

“O que eu vejo? Quando eu vejo os discursos dessas pessoas, quando eu vejo essas pessoas acharem bonito que ‘tem que vender tudo o que é público’, que ‘o público não presta nada’, ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus. Porque esse monstro está permitindo que os cegos comecem a enxergar que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises. Essa crise do coronavírus, somente o Estado pode resolver isso, como foi a crise de 2008”, disse Lula. Mino Carta não contestou, ou seja, deve concordar ou não estava ouvindo direito.

Contextualizar o “ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus torna a frase de Lula ainda mais cruel. É isso mesmo o que ele quis dizer: em nome de comprovar seu ponto de vista ideológico sobre o papel do Estado, vale a pena sacrificar vidas humanas. O ex-presidente diz isso porque internalizou a noção de que sua existência vale mais que a dos demais brasileiros.

Não há defesa para a atitude do ex-presidente e, pelo menos para mim, é impossível compreender os que se metem publicamente a minimizar a falta de compaixão da declaração. O que pensar então do outro líder político que move paixões, atualmente muito mais pessoas do que Lula e que, ao contrário do ex-presidente, tem o dever de zelar pelas famílias que sofrem? Eu sinceramente não sei.

Por dever de ofício, entendo que uma das ferramentas de comunicação mais poderosas de líderanças populistas ou narcisistas é chocar as massas debochando do sofrimento alheio, tanto para deixar as pessoas atarantadas na hora de reagir quando para plantar o sentimento de que são imunes àquele mal e, portanto, superiores.

Compreendo perfeitamente as razões técnicas de comunicação e marketing que podem ter levado o presidente Jair Bolsonaro a fazer uma live em que ri da própria piada ruim no mesmo dia em que mais de 1000 cidadãos brasileiros morreram. Não compreendo que aceitemos.

“Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína”, disse o presidente da República, entre gargalhadas. É o mesmo que até hoje não compareceu a uma cerimônia fúnebre, não fez um memorial para as vítimas, não visitou doentes em hospitais, não se solidarizou com médicos, enfermeiros, profissionais de saúde, pessoal de limpeza dos hospitais, agentes funerários, coveiros, motoristas de transportes públicos, trabalhadores de mercados, farmácias, entregas.

Aliás, se esses são os deveres civilizatórios, de honra e moral, o dever pragmático também não foi feito até agora: o plano concreto para enfrentamento da doença e posterior recuperação da economia, que o Chefe de Governo deveria ter apresentado em janeiro.

Assim como os lulistas, os idólatras de Jair Bolsonaro se desdobram em desengajamento moral para justificar tanto a falta de compaixão quanto o fato de não apresentar resultados. Ele é perfeito, o problema é a imprensa que distorce, culpa dos outros, não deixam fazer porque é contra o establishment. As desculpas são as mesmas. São ídolos inquestionáveis com um séquito disposto a tratá-los como tal, não como humanos falíveis que, quando no poder, têm o dever da transparência.

Ninguém virá nos salvar, ninguém virá mudar a política, ninguém virá nos tratar com o respeito que merecemos. Abraham Lincoln tem outra frase menos conhecida, mas também muito interessante: “Ninguém é suficientemente competente para governar outra pessoa sem o seu consentimento”. Se os poderosos não têm compaixão, é defeito de caráter deles. Poder externar e ainda ter defensores só ocorre por que nós consentimos.

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

Be the first to comment on "Embriagados pelo poder, acima do bem e do mal: nossos ídolos humanos"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*