Covid-19: 114 mortes em casa no Ceará expõem rede de saúde exaurida

Eliton, na foto abraçado ao neto, é um dos 114 rostos de pessoas que morreram em casa por Covid-19

Receio em procurar hospitais superlotados, falta de leitos e agravamento súbito dos sintomas da infecção pelo novo coronavírus figuram entre os motivos do crescimento do número de óbitos domiciliares

A casa-símbolo da infância e da adolescência é, agora, um ambiente estéril de boas lembranças. O corredor de acesso ao aposento dos pais tornou-se mórbido. “É como visitar um cemitério”, compara Meg Banhos, 48, após encontrar o pai deitado e sem vida na cama do próprio quarto, no último dia 23 de abril. Eliton Banhos faleceu aos 74 anos, somando-se às 113 pessoas que já morreram de Covid-19 em casa, no Ceará, conforme atualização do Integra SUS, plataforma da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), às 17h57 dessa quarta-feira (13).

O número, aliás, cresce de forma acelerada. No fim de março, o Estado registrava quatro óbitos domiciliares. Em abril, já eram 38, saltando para 45 no primeiro dia de maio – e a quantidade de registros mais que dobrou em menos de duas semanas, atingindo 100 óbitos em casa, nessa terça-feira (12). Para Keny Colares, infectologista do Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ), os fatores são múltiplos – mas evidenciam, principalmente, a sobrecarga dos sistemas de saúde público e privado.

“A doença tem sintomas muito variáveis, o que faz com que muitos não pensem que estão infectados, por não estarem com quadro gripal característico. Os idosos, principalmente, ficam indispostos, mais molinhos, mas a sintomatologia não fica clara. As pessoas também sabem que as unidades de saúde vão estar lotadas, têm medo de se contaminar no local, e acabam ficando em casa. Mas quando a doença piora, é de forma rápida. Às vezes, não dá mais tempo socorrer”, pontua.

503 auxílios concedidos

Entre janeiro e 17 de abril deste ano, mais de 500 famílias receberam o auxílio-funeral da Prefeitura de Fortaleza. Só em março, foram 129 urnas ofertadas, somadas a mais 60 concedidas até o dia 17 de abril. O restante do mês não foi informado à reportagem

Para Eliton, foi exatamente assim. Ao surgirem a tosse insistente e “uma febre que passou no mesmo dia”, os filhos e a esposa contataram médicos da família e o próprio TeleSaúde, da Sesa, para buscar orientações. “No terceiro dia (de sintomas), começou a diarreia. Ficamos mais preocupados ainda, mas, apesar disso, resolvemos esperar, porque ele não tinha falta de ar e os hospitais já estavam lotados. No quinto dia, ele teve uma boa melhora, só persistia a tosse. Já estava até brincando sobre o fim da quarentena. Mas, no sexto, amanheceu morto”, relembra Meg, cujo pai era cardíaco e diabético.

A dor da perda é palpável, hoje, em cada cômodo. “Depois que o SVO (Serviço de Verificação de Óbitos) saiu, ficou aquele silêncio dentro de casa, ninguém se falava. Até que chegou a funerária, voltei lá no corredor do quarto e disse ‘pai??’, como quem pede ‘faz isso não, levanta!’. Eu, minha mãe, meu irmão, a gente não podia nem se abraçar pra se consolar”, relata a designer.

Em casa

Meg descreve também outro fator que tornou a morte domiciliar do pai ainda mais avassaladora: a urna funeral não cabia no elevador nem na escada do prédio. Foi deitado numa rede azul que Eliton saiu de casa pela última vez. “Eles vieram arrastando a rede pelo corredor, como num cortejo do interior. O corpo passou pela minha mãe, que chorou muito. Tive que segurar a porta do elevador pro corpo do meu pai passar. Foi essa a última vez que o vi”, narra. O sepultamento durou exatos um minuto e oito segundos – tempo do vídeo gravado pelo irmão de Meg, único familiar a seguir o cortejo de Eliton ao cemitério.

Três dias após a morte do esposo, Elza Banhos, 73, começou a apresentar sintomas, chegando a convulsionar em casa. Desta vez, não houve espera. “Chamamos o Samu e começou a corrida por hospitais: três privados não estavam atendendo mais, lotados. Conseguimos atendimento numa UPA, mas mandaram ela pra casa. Num quarto hospital particular, conseguimos vaga. Na fila pra atendimento, ela teve outra convulsão. Foi levada pra UTI e não nos vimos mais por dois dias e meio”. Elza e a filha-acompanhante saíram do hospital nove dias depois – a mãe com diagnóstico positivo para Covid-19. A filha testou negativo no início da internação, mas não sabe se contraiu o vírus durante a estada.

“Você acha que nunca vai acontecer com você – mas nessa pandemia, mais do que nunca, esse pensamento está fora da realidade. Eu mesma não achava que aconteceria, e perdi meu pai. Cuide dos seus, abrace de longe, não deixe de dizer ‘eu te amo’, olhar no olho, fazer um carinho, mandar uma mensagem. Isso é essencial nessa hora. Esse inimigo ataca o corpo e a alma não só dos infectados, mas de todos ao redor”, finaliza Meg.

Cuidados

De acordo com o infectologista Keny Colares, as orientações sobre quando procurar uma unidade de saúde estão mudando, e “já superaram a presença da falta de ar”.”É preciso ampliar esses sintomas e ficar atento, não esperar só febre e tosse; e procurar o sistema de saúde pelo quinto dia a partir do primeiro sintoma, quando dificilmente o quadro será grave. Quem não for grupo de risco, procura teleatendimento; quem for, posto de saúde”.

O infectologista aponta que os óbitos em casa estão sendo avaliados pela Sesa, e, na maioria, são de “pessoas idosas, com comorbidades, que não tinham sintomas óbvios”. Apesar disso, é preciso estar atento para todas as idades. “Muitos procuram um médico com dois dias de sintomas. Nessa fase, os exames podem não dizer nada, e a pessoa fica despreocupada por isso. Mas a doença tem essa pegadinha: chega no começo, dá uma melhoradinha, e depois piora. Os pacientes precisam ser orientados a retornar à unidade”, alerta Keny.

Contudo, a eficácia dos atendimentos é afetada pela superlotação. “A capacidade de os médicos verem pacientes com a calma e o detalhe necessários está prejudicada. Muitas vezes, o profissional gostaria de internar, mas não tem leito, e precisa mandar para casa. O sistema vai perdendo a capacidade de fazer o que precisa ser feito, por falta de condições, de gente, de recursos. Pra conseguirmos manter o atendimento digno e eficiente, o número de casos precisa ser controlado. A população tem de entender que precisa se isolar, se preservar e evitar se infectar”, finaliza o médico.

A secretária executiva de Vigilância e Regulação da Sesa, Magda Almeida, reforça que os óbitos em casa estão “em investigação detalhada”, e que já existem duas principais hipóteses para o aumento deles.

“Queremos saber se ocorreram por falta de acesso ao serviço de saúde ou porque as pessoas não procuraram. Notamos, inclusive, um aumento do atendimento do SVO em relação a 2019, em março (40 casos a mais) e abril (150 casos a mais). Vamos procurar entender”, pontua, ressaltando que as diferenças entre Capital e interior serão consideradas.

Com o avanço dos estudos, feitos por uma comissão de avaliação de óbitos, já é possível traçar um perfil das vítimas. “A maioria é mesmo de pessoas acima de 70 anos e com outras doenças. É um público que não pode esperar a doença ficar grave, tem que procurar o serviço de saúde de preferência entre o terceiro e o quinto dia de sintomas”, alerta Magda.

Confira matéria do Site Diário do Nordeste


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