Coronavírus acirra disputa entre EUA e China. Quem sai ganhando?

Trump e Xi Jinping, presidentes de EUA e China, respectivamente, durante encontro de líderes em Pequim.| Foto: NICOLAS ASFOURI/AFP or licensors

A pandemia do novo coronavírus piorou drasticamente as relações entre Estados Unidos e China – que já não eram das melhores.

No início de 2020 havia espaço para otimismo quando ambos assinaram a primeira fase do acordo comercial, cujo objetivo é colocar um fim à guerra de tarifas entre as duas maiores economias do planeta. Mas rapidamente esse sentimento foi suplantado pela crise diplomática desencadeada pelo novo coronavírus.

Um dos primeiros sinais de atrito veio quando o governo chinês criticou a decisão da Casa Branca de barrar a entrada de voos da China em território americano, classificando-a como preconceituosa e exagerada. Isso ocorreu no fim de janeiro, quando o mundo ainda estava prestes a descobrir o tamanho do desafio que o minúsculo vírus representava.


Foi também no início da epidemia que começou a circular nos Estados Unidos uma teoria de que o vírus teria sido criado em um laboratório chinês (algo que nem a inteligência do governo americano cogita) ou que teria se espalhado para a população após um acidente em um laboratório de Wuhan. Essa segunda hipótese foi levantada pelo senador republicano Tom Cotton em meados de fevereiro.

Os chineses revidaram. Usando seu amplo arsenal midiático estatal, o governo de Xi Jinping, sem nenhuma evidência, passou a afirmar que o vírus era obra dos Estados Unidos. Em 12 de março, o diretor-adjunto e porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, afirmou em sua conta no Twitter que o “exército dos EUA pode ter trazido” o coronavírus à cidade de Wuhan, epicentro da pandemia. Uma mensagem que claramente tinha como alvo o público interno e cujo objetivo era encontrar um culpado pelos problemas que o próprio governo chinês havia criado.

Nessa história, houve uma divisão dentro do Partido Comunista Chinês, algo raro de ser observado em público. Enquanto Zhao dava vazão a essa teoria conspiratória, o embaixador chinês nos Estados Unidos, Cui Tiankai, descartou completamente a hipótese. Descobrir a origem do vírus “é um trabalho para os cientistas, não para diplomatas, não para jornalistas, porque essa especulação não ajudará ninguém”, disse Cui.

A discussão sobre a origem do vírus, contudo, não terminou nisso. Por um lado, os Estados Unidos disseram que estão investigando a possibilidade de que o novo coronavírus tenha contaminado um humano pela primeira vez em um acidente no laboratório de Wuhan. Do outro, os chineses mandaram um sinal de que não estão confortáveis com a discussão sobre a origem do vírus ao ordenar que todos os trabalhos de pesquisa relacionados ao tema passem pelas mãos do Ministério de Ciência antes de serem publicados.

Houve outros confrontos diplomáticos entre EUA e China no decorrer destes quatro meses. O mais emblemático deles talvez seja o uso do termo “vírus chinês” por autoridades americanas e pelo próprio presidente Donald Trump. A pressão do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, para declarar o Sars-CoV-2 como o “vírus de Wuhan” fez com que os sete países mais desenvolvidos do mundo (o Grupo dos Sete) não assinassem uma declaração conjunta sobre a pandemia em 24 de março.

Nesse período também veio à tona a crise diplomática relacionada aos jornalistas americanos e chineses. Os Estados Unidos oficializaram em 2 de março a explusão de 60 jornalistas chineses de seu território. Essa decisão, que afetou os jornalistas empregados em meios de comunicação estatais da China, já estava sendo considerada antes mesmo da pandemia, devido à máquina de propaganda chinesa com viés antiamericano. Em um revide desproporcional, 15 dias depois, o governo chinês expulsou do país jornalistas do New York Times, Wall Street Journal e Washington Post – publicações sem relação  com o governo americano.

Mais recentemente, a China se tornou o pivô de um desentendimento entre a Casa Branca e a Organização Mundial de Saúde. Trump anunciou a suspensão temporária do financiamento à OMS enquanto o governo americano avalia o papel que a organização desempenhou na resposta à pandemia, e também exigiu da China mais transparência quanto aos seus dados do coronavírus, cada vez mais irreais frente aos números muito maiores que estão sendo apresentados em democracias do Ocidente, como Itália, França, Espanha e Estados Unidos.

Na crise da OMS, a China se colocou ao lado da organização, defendendo o multilateralismo e, mais uma vez, rivalizando com os EUA.

Quem se fortalece essa briga: EUA ou China?

Analistas de política internacional concordam que ambos os governos erraram na condução da crise da Covid-19 – obviamente não na mesma proporção.

A China silenciou os médicos que primeiro alertaram sobre a doença. Uma reportagem da Associated Press revelou que o presidente Xi Jinping já sabia que o coronavírus era transmitido entre humanos seis dias antes de alertar a população, permitindo que a Covid-19 se propagasse. Canais oficiais espalharam desinformação. O Partido Comunista continuou calando os críticos de Xi e, suspeita-se, esteja interferindo no trabalho realizado por cientistas.

Isso é de conhecimento público e vai prejudicar os esforços da China em capitalizar influência política, especialmente agora que o país diz ter superado a primeira onda da epidemia e está ajudando outras nações que lutam contra a doença ao enviar equipamentos e médicos para o exterior. Até mesmo essa boa vontade esbarrou em críticas, depois que alguns países europeus reclamaram da qualidade de alguns testes e máscaras que haviam sido comprados na China.

Por outro lado, o país asiático pode ganhar influência global ao se posicionar como uma ajuda, enquanto os Estados Unidos estão travando a exportação de itens de saúde enquanto passam pela crise de saúde. Isso deve ocorrer principalmente países em desenvolvimento e em dificuldades econômicas, com os quais a China já tem um relacionamento por meio da Belt and Road Initiative (também conhecida como Cinturão Econômico da Rota da Seda).

Com US$ 3 trilhões em reservas internacionais, a China tem condições de conceder empréstimos para governos em apuros. Em 18 de março, por exemplo, o Banco de Desenvolvimento da China atendeu a um pedido do governo de Sri Lanka e assinou com o país um empréstimo de US$ 500 milhões a serem pagos em dez anos.

“Os líderes nacionais chineses, o governo chinês e as instituições financeiras relacionadas, em seus esforços para combater a nova epidemia de coronavírus, responderam ativamente às necessidades financeiras e anti epidêmicas urgentes do Sri Lanka e tomaram providências especiais o mais rápido possível”, disse o primeiro-ministro do Sri Lanka, Mahinda Rajapaksa.

O poder de financiamento a outros governos, porém, é limitado, como escreveu Kelsey Broderick, especialista em macroeconomia e tendências econômicas na China para o Eurasia Group, uma consultoria americana. Ela lembrou que as exportações chinesas estão em queda devido ao coronavírus e emprestar dinheiro para outros países de forma agressiva pode não ser bem visto pelos chineses.

“Por enquanto, a China está se empenhando em defender o sistema multilateral existente no mundo e não tentará substituir instituições como o FMI”, escreveu, acrescentando ainda que a China quer evitar empréstimos para governos mau pagadores, como a Venezuela.

A disputa tecnológica, que gira em torno da rede 5G, é outro exemplo de como a China poderia sair ganhando após a pandemia, apontou Jude Blanchette, diretor do projeto Reconectando a Ásia, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), um think tank baseado em Washington.

A crise do coronavírus não travou a expansão dos investimentos em 5G dentro da China – pelo contrário, a acelerou, a pedido do próprio Xi. Segundo Blanchette, o mesmo deve ocorrer em países com quem a China tem fortes laços econômico, por meio de investimentos de companhias estatais e privadas com forte ligação com o governo chinês, como a Huawei.

“Comparados aos grandes projetos de transporte e energia que dominaram os primeiros anos da BRI, os projetos de tecnologia da informação e comunicação são geralmente de custo mais baixo, mais fáceis de entregar e mais fáceis de monetizar. Esses atributos os tornam menos arriscados e mais atraentes para os investidores”, escreveu o pesquisador.

Embora economicamente o esforço não tenha significativa importância para a China, ele tem muita relevância no jogo político internacional. A batalha que o país trava com os Estados Unidos em torno do 5G já é bem conhecida, e a pandemia, de acordo com Blanchette, pode oferecer novas oportunidades para a ascensão da China como potência tecnológica e fornecedora global de infraestrutura digital, especialmente nos países emergentes.

Isso, então, significa que a China sairia ganhando com a epidemia que começou em seu próprio território?

Infelizmente a resposta não está clara a esta altura, mas há uma série de questões que colocam em xeque esta conclusão.

Por exemplo, os países com melhores condições econômicas tendem a ser menos receptivos aos produtos chineses depois desta crise. Líderes europeus já teceram várias críticas à maneira como a China vem respondendo à pandemia, especialmente sobre a falta de transparência e a tentativa de usar a crise como uma forma de lucrar politicamente às custas dos Estados Unidos e União Europeia.

Como argumentou Rush Doshi, diretor da Brookings China Strategy Initiative, “a China quer reivindicar a liderança da resposta global ao coronavírus”, mas “encobrir o vírus e descaradamente mentir sobre suas origens complica o esforço”.

Outro fato a ser levado em conta: a pandemia pode desencadear uma saída de empresas da China.

William Reinsch, pesquisador do CSIS e que, por anos, foi membro da Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China no Congresso americano, explica que a retirada de fábricas da China não será um movimento em massa, mas algo a ser considerado pelas empresas que têm cadeia de suprimentos lá.

“Ao forçar o desligamento da produção em muitas partes do país para lidar com o coronavírus, o governo chinês forçou as empresas ocidentais a reavaliar sua presença lá, mesmo que ainda não tivessem começado a fazê-lo”, escreveu Reinsch em artigo publicado em 2 de abril.

Essas empresas podem seguir o que a própria China já faz há alguns anos: criar planos para tornar a cadeia de produção menos dependente do exterior. A Huawei, que está no centro da disputa tecnológica entre EUA e China, é um exemplo. Depois de ter sido sancionada pelos EUA, a gigante das telecomunicações diminuiu drasticamente sua dependência de fornecedores estrangeiros.

O Japão já considera essa ideia e destinou US$ 2,2 bilhões do seu pacote de estímulos econômicos para ajudar os fabricantes nacionais a mudar a produção para fora da China.

“Esse movimento, claramente, coloca alguns desafios de longo prazo para a economia da China”, disse Brad W. Setser,  membro sênior na área de economia internacional no Conselho de Relações Exteriores, um think tank americano. “Embora a China seja menos dependente das exportações manufaturadas do que era na época da crise financeira global (em 2008), a China ainda detém de longe o maior excedente industrial do mundo, em aproximadamente um trilhão de dólares”, disse na semana passada em um evento organizado pelo Conselho de Relações Exteriores (CFR, na sigla em inglês).

A posição de liderança dos Estados Unidos no mundo também não pode ser descartada com tanta facilidade, afirmam os especialistas em estudo asiático do CSIS, Michael Green e Evan Medeiros. Contudo o país não está no seu melhor momento.

Os Estados Unidos têm o maior número de casos e de mortes por coronavírus neste momento. Isso prejudicou imensamente a imagem do governo Donald Trump, que no início da crise minimizou o impacto que a Covid-19 teria no país.

Os americanos têm sofrido principalmente com falta de equipamentos de proteção e o atraso nos testes para o coronavírus, que, segundo especialistas, ocorreram devido a falhas da resposta da Casa Branca à crise. Jeffrey Levi, professor de política e gestão em saúde na Universidade George Washington, disse à BBC que o governo Trump “desconsiderou os planos de resposta a pandemias, que remontam à presidência de George W. Bush, e falhou em atender totalmente à sua burocracia de saúde pública”. Trump alega que sua reação inicial se baseou em informações errôneas transmitidas pela China e pela OMS.

A liderança global dos EUA está ameaçada pelo próprio posicionamento do governo Trump em priorizar questões internas em detrimento das relativas à política internacional, a exemplo das várias tentativas de diminuir o número de soldados americanos no exterior. A rejeição a organizações e acordos multilaterais, como a OMS, e o desgaste da relação com os aliados europeus também não ajudam a colocar os Estados Unidos como um líder global na resposta ao novo coronavírus – talvez nem haja esse interesse por parte da Casa Branca.

Mas como escreveram Green e Medeiros, o poder dos Estados Unidos “repousa sobre uma combinação duradoura de capacidades materiais e legitimidade política”. Segundo eles, há poucos sinais de que a pandemia esteja causando uma mudança rápida e permanentemente do poder em prol da China.

“É essencial que os Estados Unidos restabeleçam uma liderança competente nessa pandemia em todos os níveis”, escreveram. “O mundo claramente precisa de um sistema global de vigilância, teste de detecção e resposta farmacológica. Até o momento, a retórica e a diplomacia da China geraram ganhos limitados, mas os Estados Unidos e seus aliados devem permanecer vigilantes para que Pequim não expanda ainda mais seu papel na governança global e no desenho institucional, em um momento em que Washington está recuando”.

De fato, os Estados Unidos estão começando a ajudar países parceiros por meio de suas agências federais. Em 17 de abril, por exemplo, o governo dos EUA forneceu mais de US$ 32 milhões em financiamento para apoiar a resposta à Covid-19 nos países das ilhas do Pacífico.

Dias antes, o Departamento de Estado dos EUA havia afirmado, em nota, que “o governo dos EUA lidera a resposta humanitária e de saúde do mundo à pandemia de Covid-19, mesmo enquanto combatemos o vírus em casa”.

No comunicado, o departamento e a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA (USAID) afirmam que comprometeram até o momento quase US$ 508 milhões em assistência emergencial de saúde, humanitária e econômica. “Esse financiamento apoiará atividades críticas para controlar a propagação desta doença, como campanhas rápidas de informação em saúde pública, água e saneamento e prevenção e controle de infecções em unidades de saúde”, informou Morgan Ortagus, porta-voz do Departamento de Estado. A ajuda é destinada a vários países da África, da Ásia, da Europa e da América Latina – que inclui Equador, Bolívia, Colômbia, Venezuela, entre outros países, mas não o Brasil.

Para Elizabeth Economy, diretora de estudos da Ásia no CRF, nem China e nem Estados Unidos merecem consideração sobre um papel de liderança pós-pandemia. “Ambos falharam com seu próprio povo e com o resto do mundo”, afirmou ela.

“Outras nações exemplificam o tipo de liderança necessária diante dessa crise – em particular Taiwan, Coreia do Sul e Japão. Infelizmente, nenhum deles tem os meios políticos, econômicos e militares para liderar globalmente a longo prazo. A única questão que resta agora é se a China ou os Estados Unidos surgirão na ocasião após a crise para demonstrar outra qualidade de grande liderança: a capacidade de aprender, adaptar e fazer melhor”.

Para onde vai a relação?

Há espaço para entendimento entre China e Estados Unidos. Embora a comunicação diplomática seja difícil entre os dois países, os líderes mantêm conversas frequentes. Trump elogiou Xi publicamente em diversas ocasiões e evitou chamar o coronavírus de “vírus chinês” nas vezes em que se referiu ao presidente da segunda maior economia do mundo.


Um dos motivos para essa cautela por parte do presidente americano talvez esteja relacionada à possibilidade de manter um canal de comunicação aberto com a China e chegar a um entendimento quanto à fase dois do acordo comercial entre os países, que seja favorável aos EUA e que Trump possa usar como material de campanha.

Em uma postura otimista, a parceria comercial com a China e um entendimento com o país também será importante enquanto ambos se recuperaram da crise econômica sem precedentes que está se desenhando.

Por outro lado, o assunto pode se tornar menos relevante já que está crescendo um sentimento nacionalista nos EUA em relação ao comércio, o que pode fazer afundar a fase dois do acordo comercial – a qual também dependerá do comprometimento  e da capacidade da China em cumprir a primeira etapa em meio à crise econômica, especialmente quanto à promessa de aumentar as compras de produtos agrícolas americanos.

É preciso lembrar ainda que em novembro haverá eleições presidenciais nos Estados Unidos. Embora o democrata Joe Biden, candidato que concorrerá contra Trump, também seja crítico da China – em 25 de fevereiro, em um debate, chamou Xi de “bandido” que “tem um milhão de uigures” em campos de concentração – a estratégia americana deve mudar se um novo presidente vier a ocupar a Casa Branca a partir de 2021.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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