Transação é possível desde janeiro para quem confessar crimes de penas de até 4 anos e sem violência. G1 apurou que mais 4 estados já homologaram acordos do tipo. Advogado alerta para risco de suspeito confessar mesmo não tendo cometido crime.
A Justiça de São Paulo homologou o primeiro acordo de não persecução penal proposto pelo Ministério Público no estado com base na Lei Anticrime, que entrou em vigor em todo o Brasil em 23 de janeiro deste ano, segundo divulgou o Tribunal de Justiça. O acordo faz com que o criminoso não possa mais ser punido pelo que fez.
A decisão foi publicada pela juíza Patrícia Álvares Cruz, coordenadora do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), localizado no Fórum da Barra Funda, na Zona Sul da capital paulista, na terça-feira (10), e envolveu um comerciante que era investigado pela Polícia Civil sob suspeita de receptação de um carro roubado na Zona Norte de São Paulo.
Pela nova regra da Lei Anticrime, acusados de crimes com penas de até 4 anos de reclusão deixam de responder a processo e não serão julgados, não correndo o risco de serem presos, se confessarem a prática do delito ainda durante a fase inicial de investigação policial.
O acusado também precisa reparar o dano que causou, devolvendo o produto do crime e abrindo mão dos bens obtidos de forma ilícita. O acordo só vale caso os crimes tenham sido cometidos sem violência (veja, abaixo, as regras para o acordo).
O G1 apurou que, além de São Paulo, outros quatro estados (Roraima, Acre, Santa Catarina e Rio Grande do Norte) também já homologaram os primeiros acordos com base no novo dispositivo.
No caso que resultou em acordo nesta semana em São Paulo, um inquérito foi instaurado em julho de 2019 no 46º Distrito Policial (Perus) para apurar o crime e foi remetido para o Ministério Público em janeiro de 2020, após o indiciamento do comerciante por receptação.
Foi quando a promotora Lúcia Nunes Bromerchenkel, que acompanhava o inquérito, propôs o acordo ao investigado: caso ele confessasse o crime e cumprisse algumas condições, deixaria de responder ao processo.
O indiciado aceitou e terá que prestar serviço comunitário por 6 meses, doar recursos para o Grupo de Apoio com Câncer (Graac), não mudar de endereço sem avisar a Justiça e também não ser processado por outro crime durante o prazo de cumprimento das regras.
Agora, com a publicação da decisão na terça-feira, a delegacia que investigou o caso será informada, assim como um juiz que ficará responsável pela execução das tratativas, verificando, a cada dois meses, se o acordo está sendo cumprido pelo suspeito.
Para facilitar a prática de acordos deste tipo no estado, o Ministério Público promoverá mudanças na estrutura no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista, criando salas para que as promotorias possam fazer de forma mais ágil a composição extrajudicial.
“Os acordos serão cada vez mais rotineiros. Nossa instituição quer, cada vez mais, para pequenos e médios delitos, a Justiça negociada. Vamos promover uma reestruturação, ainda neste mês, nas nossas instalações na Barra Funda para criar salas que permitam estas tratativas e facilitar as conversas com a Defensoria Pública”, disse ao G1 o promotor Arthur Pinto de Lemos Júnior, coordenador da coordenadoria de atuação criminal do MP de São Paulo.
Como é o acordo:
- O investigado tem que confessar o crime
- Tem que ser réu primário
- Crimes de pena mínima inferior a 4 anos
- Crimes sem violência ou grave ameaça
- Não pode haver elementos que indiquem ser criminoso habitual
- Não pode para violência doméstica, familiar ou contra a mulher
- O acusado deve seguir regras: renunciar ao proveito do crime, prestar serviços à comunidade, devolver o bem à vítima, pagar multa ou ajudar entidade social
- O MP não oferece denúncia e o inquérito é arquivado, sem abertura de processo
O acordo não gera reincidência e não é uma admissão de culpa perante a Justiça. Porém, não é permitido que a mesma pessoa tenha direito à transação semelhante no prazo de 5 anos.
Risco de confissão sem crime
Para o professor e doutor em Direito Penal, o criminalista Conrado Gontijo, o instituto provoca muitas mudanças no dia a dia do processo penal. Ele alerta, porém, ao risco de pessoas confessarem a prática de crimes, mesmo sem terem cometido, para se verem livres de um processo.
“É uma inovação importante, que muda a forma de ver e a lógica do direito penal: da época em que o MP não poderia deixar de acusar, para a busca de uma solução consensual ao estilo do ‘plea bargain’ nos Estados Unidos”, explica o professor e doutor em Direito Penal Conrado Gontijo.
“Mas há o risco de muita gente confessar o crime mesmo sem ter cometido. ‘Eu não pratiquei o crime, mas vou confessar porque vou ficar 10 anos respondendo a processo e ficar na mão de um juiz que não sei se será técnico. Temos que ficar atentos para este tipo de instituto não virar a regra, não ser banalizado”, assinala Gontijo, que também é advogado.
O coordenador do MP responsável pelos acordos em São Paulo discorda da posição. Isso porque, conforme a lei, a proposta do acordo pelo MP só é possível quando não se tratar de casos de arquivamento da investigação ou suspensão do processo.
“É uma ilusão achar que o promotor vai ser enganado com uma falsa confissão. Isso é subestimar a capacidade do promotor. O acordo só será feito se a pessoa voluntariamente confessar e nos casos em que não couber arquivamento. O promotor tem indícios e provas para a denúncia, para acusar a pessoa, mas escolhe propor o acordo”, entende o promotor Arthur Lemos Júnior.
Antes mesmo da Lei Anticrime entrar em vigor permitindo transações em casos de crimes com penas leves, alguns estados já haviam começado a fazer acordos deste tipo.
Em julho de 2019, a Justiça do Distrito Federal homologou um acordo com uma servidora pública que era investigada por acumulação ilegal de cargos e pela fraude de ponto.
Pelo acordo, a servidora confessou o crime e aceitou pagar R$ 10 mil para a reforma de cadeiras de um hospital público.
Impacto nas prisões
O advogado Conrado Gontijo não acredita na possibilidade dos acordos terem efeito em diminuir o número de pessoas levadas à prisão. Isso porque, no Brasil, segundo ele, “um grande número de presos são provisórios”.
A prisão provisória ocorre antes da condenação por parte do juiz quando o suspeito, ainda durante a fase de investigação, representa um risco para a produção de provas, para testemunhas ou de fuga, dentre outros motivos. Levantamento realizado pelo G1 aponta que, em 2020, o número de presos provisórios representa 31% do total dos detentos do país.
“Eu não sei se isso vai gerar um impacto nas prisões, porque temos uma massa de presos preventivos, ainda não condenados, presos na fase do inquérito, sendo que a maior parte dos inquéritos, da apuração policial, ainda está sem solução. Estes casos nem chegam no momento da proposta do acordo. Não acredito que uma mudança legislativa nova pode mudar isso (o grande número de presos no Brasil)”, assinala o criminalista.
Já o MP tem uma visão diferente. Para o responsável pela coordenação das promotorias criminais do estado de São Paulo, a medida, “sem dúvida alguma”, trata-se de “uma política de desencarceramento”.
TJ-SP passa a autorizar acordos
No dia 4 de março, o Tribunal de Justiça decidiu que todas as varas de execuções criminais do estado de São Paulo podem homologar acordos deste tipo.
Para que haja a homologação do acordo, segundo o TJ paulista, é necessária a realização de uma audiência, em que o juiz entrevistará o suspeito, questionando-o se ele confessou o crime e se está fazendo a transação de livre e espontânea vontade.
O juiz também analisará se a proposta do Ministério Público é a ideal e irá acompanhar o cumprimento do acordo por parte do suspeito.
Be the first to comment on "SP faz primeiro acordo para que autor de crime não responda a processo e nem seja preso"