Em O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o príncipe de Falconeri, membro da aristocracia em declínio diante de uma burguesia ascendente, resistia às mudanças. Em conversa com seu tio, disse: “a não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.
Há muitas mudanças acontecendo no Brasil que têm por efeito deixar tudo como sempre foi. Dentre elas está decisão proferida em outubro do ano passado pelo Supremo Tribunal Federal, que determinou que deve haver prazos separados para as alegações finais dos réus delatores e dos delatados.
Quanta demora e impunidade a nova regra causará? Provavelmente você não sabe. O julgamento do STF desconsiderou isso também. A corte sabia que sua decisão teria efeitos prejudiciais sobre a duração razoável do processo e a eficiência da justiça, mas não mensurou a gravidade desses efeitos.
O exame aleatório de três ações penais da Lava Jato mostra que a demora dos processos pode dobrar. Além disso, três ações já foram anuladas. Numa delas, uma empreiteira e seus executivos tinham sido condenados a ressarcir mais de R$ 380 milhões aos cofres públicos.
Qual a base para a nova norma? Ela não estava especificada em lugar nenhum. A corte suprema, por maioria de sete contra quatro ministros, entendeu que a regra é uma decorrência lógica dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, que asseguram que o réu tenha a oportunidade de se manifestar depois da acusação.
Contudo, uma coisa é distinguir acusação e defesa; outra bem diferente é fazer distinção entre as defesas de dois réus, a depender da adoção ou não da colaboração premiada como estratégia: isso parece ser inédito no mundo. Não há nada similar, pelo menos, em diversos países de longa tradição de respeito aos direitos dos acusados.
O ponto que farei aqui é que, ainda que o raciocínio vencedor no STF fosse acertado, direitos e valores constitucionais, como a ampla defesa e o contraditório, não são absolutos. Eles devem ser ponderados e conciliados com outros direitos e valores reconhecidos pelo texto constitucional. Faltou essa conciliação no julgamento.
Uma coisa é distinguir acusação e defesa; outra bem diferente é fazer distinção entre as defesas de dois réus
Com efeito, a mesma Constituição que assegura a ampla defesa e o contraditório também garante o direito fundamental à duração razoável do processo. Protege, ainda, o direito a uma atuação eficiente do Estado na aplicação do direito penal, para proteger a vida, o patrimônio público e outros bens relevantes. No entanto, o Estado sistematicamente tem desprotegido estes últimos direitos.
Realmente, vivemos um tempo de injustiça institucionalizada. “Justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”, disse Rui Barbosa, que citei no artigo anterior publicado neste espaço. Como lá apontei, são longos oito anos entre a investigação e a condenação final do criminoso. Esse prazo pode ser muito maior em casos complexos – de corrupção, por exemplo –, quando a apuração é difícil ou há múltiplos réus e um arsenal de recursos à disposição em quatro instâncias.
Foi nesse contexto de morosidade crônica que o STF criou a nova regra, sem embasá-la em um estudo empírico que quantificasse suas óbvias consequências adversas sobre a duração dos processos. A decisão vai na contramão do clamor crescente da sociedade por políticas púbicas baseadas em evidências.
É inviável realizar uma adequada ponderação ou balanço de direitos e valores sem ter presente como serão afetados. No entanto, o Supremo decidiu sem saber isso e em dezembro, na sua esteira, também às cegas, o Congresso Nacional inseriu a nova regra no projeto anticrime aprovado.
Agora, por força de lei, “em todas as fases do processo, deve-se garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou”. Com isso se engessou e perenizou um entendimento recente do STF, quando o debate social aprofundado poderia alterá-lo para diminuir seu impacto na duração e eficiência dos processos.
Analisemos, então, o impacto da decisão e da lei sobre a tramitação na primeira instância de três processos de duração média na Lava Jato.
Usaremos os seguintes critérios no cálculo: tomamos em conta o tempo decorrido entre o recebimento da denúncia e a remessa de cada caso para a segunda instância, e quanto ele demoraria se a norma já estivesse em vigor. Para fazer a conta, o prazo para manifestação das defesas foi duplicado. Nas situações em que havia prazo comum para manifestação da acusação e das defesas, o prazo foi triplicado, porque sob a nova diretriz precisam falar sucessivamente Ministério Público, delator e delatado. Não foi duplicado ou triplicado o prazo comum para ciência. Foi considerada ainda a fruição integral dos prazos, que é frequente, embora nem sempre ocorra, na falta de outro parâmetro. Contudo, o próprio leitor poderá aplicar um desconto na estimativa: caso se suponha que serão usufruídos 80% dos dias de cada prazo, isso diminuiria em 20% a demora adicional dos processos. Os processos analisados foram escolhidos aleatoriamente dentre aqueles que tiveram uma duração próxima à média dos demais casos.
O que se constatou? Se a nova regra estivesse em vigor quando esses processos tramitaram, sua duração chegaria a dobrar. De fato, o salto da demora chegou a ser de 12 para 25 meses em um caso – diferença de 13 meses (110%). Os outros dois foram de 16 para 25 meses (aumento de 60%) e de 14 para 21 meses (incremento de 48%).
A aplicação da nova regra para o passado desperdiça recursos escassos para a investigação, é economicamente irracional, faz do processo um looping sem fim e alimenta insegurança jurídica
No Brasil, a morosidade é cara: custa prescrição e impunidade. Contudo, os efeitos negativos da decisão do Supremo ultrapassam a demora. A própria validade do processo foi afetada. Isso porque o STF entendeu por aplicar sua nova regra, que jamais existiu em decisões ou leis pretéritas, para o passado.
É isso mesmo: apesar de a tramitação dos casos ter seguido a lei então vigente no passado, o Supremo aplicará sua nova régua ao analisar o que ocorreu no pretérito. Essa reavaliação com base em novos critérios pode gerar a anulação dos processos. Anulação, aliás, que já aconteceu pelo menos três vezes. Na primeira, em agosto de 2019, a Segunda Turma, por três votos a um, derrubou a sentença de Aldemir Bendine, condenado por receber R$ 3 milhões da Odebrecht em propinas, na qualidade de presidente do Banco do Brasil e da Petrobras. Em outubro, o plenário do tribunal, por sete votos a quatro, anulou o processo de Márcio Ferreira, condenado a dez anos por ter recebido, na condição de gerente da Petrobras, R$ 16 milhões em propinas, e por lavar recursos por meio de uma conta oculta no exterior. Neste mês de fevereiro, nova anulação: desta vez caiu a sentença da Mendes Júnior e seus executivos, condenados a ressarcir mais de R$ 380 milhões para o erário. Os três casos voltarão várias casas no tabuleiro processual e serão retomados de forma mais lenta e com maior risco de prescrição.
A aplicação da nova regra para o passado desperdiça recursos escassos para a investigação, é economicamente irracional, faz do processo um looping sem fim e alimenta insegurança jurídica. Outros casos gerarão infindáveis discussões nos tribunais e poderão ser anulados ao longo dos próximos anos.
Ainda que os processos anulados recomeçassem do zero e chegassem a novas condenações, quem garante que, daqui a cinco anos, o Supremo não criará uma nova regra e a aplicará novamente para o passado, anulando-os mais uma vez?
O ministro Luís Roberto Barroso, que votou contra a nova norma, costuma dizer que o Brasil é atrasado porque o atraso é muito bem defendido. As faculdades de Direito precisarão inserir no currículo aulas de futurologia. É o único modo de preservar o trabalho dos agentes da lei no país.
A morosidade, a prescrição associada e a anulação dos casos alimentam a impunidade. Sob o pretexto de um garantismo de direitos dos réus sem paralelo em países democráticos, violam-se direitos fundamentais das vítimas e da sociedade. A lei penal se torna inefetiva, punições nunca chegam e crimes passam a compensar.
As faculdades de Direito precisarão inserir no currículo aulas de futurologia
A nova regra é uma mudança que dificulta as mudanças que os brasileiros querem para o país. O Supremo decidiu estando ciente de que o maior impacto se dará em casos como a Lava Jato, que envolverem crimes graves ou praticados por organizações criminosas, nos quais a colaboração premiada é frequentemente utilizada como instrumento de investigação.
Reitero uma importante ressalva: respeito o Congresso e o STF, instituições essenciais para a democracia brasileira. Ao criticar suas leis e decisões, não estou afirmando que cada parlamentar ou ministro que apoiou certa decisão ou lei é desonesto ou busca proteger corruptos. Não estou julgando intenções. Analiso, sim, os efeitos práticos das leis e decisões sobre investigações e processos e seu impacto no sistema de incentivos e desincentivos à prática da corrupção no país. Críticas, mesmo severas, contribuem para o aperfeiçoamento das instituições. O silêncio e a omissão são aliados da corrupção e da injustiça.
O combate à corrupção está em franco retrocesso. Tudo está mudando de um modo que tudo permanecerá igual. Quem tiver olhos, veja. Padre Antonio Vieira disse que “a cegueira que cega cerrando os olhos não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas”. Há mais para ver. No próximo artigo, exporemos a incongruência de outras decisões que afetam o trabalho na Lava Jato contra a corrupção.
Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba.
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