A recente viagem da primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, a Paris para participar da abertura da Olimpíada amplia uma lista de iniciativas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para tornar sua esposa a segunda figura mais importante no Palácio do Planalto, superando até o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB).
A lista de atribuições dadas a Janja, que não tem cargo eletivo nem é servidora pública, inclui missões especiais no Brasil e no exterior, participação em eventos e fóruns de discussão, elaboração de estratégias de comunicação e até mesmo decoração e reformas de palácios.
A oposição condena e continua pedindo esclarecimentos oficiais sobre os motivos e os valores gastos com a recente viagem a Paris. Janja foi escolhida por Lula de última hora para representar o Brasil no evento, contrariando a prática internacional de que chefes de Estado ou de governo exerçam esse papel. Os bilhetes aéreos de ida e volta custaram R$ 83,4 mil, de acordo com o Painel de Viagens do Ministério da Gestão.
A Secretaria de Comunicação Social da Presidência tenta justificar os gastos. “As passagens foram adquiridas em aviação comercial (sem uso da Força Aérea Brasileira), seguindo os preços de mercado, que estavam elevados em razão dos Jogos Olímpicos. A primeira-dama viajou de classe executiva, conforme autoriza a legislação vigente. Os servidores do gabinete pessoal que viajaram no mesmo período atuaram no âmbito de suas competências, em apoio a comitiva oficial”, informou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência à Gazeta do Povo.
Veja abaixo uma lista das ações de Janja que já vieram a público:
1. Viagens internacionais com protocolo de chefe de Estado
Janja acompanhou Lula em diversas viagens internacionais, sendo tratada com o protocolo reservado a chefes de Estado. Isso inclui recepções oficiais, encontros com líderes estrangeiros e participação em eventos de relevância diplomática.
Em alguns, sua presença chegou a gerar constrangimento para posicionamento em fotos oficiais de autoridades e regras de cerimoniais. Na cúpula do G20 na Índia, em 2023, ela foi a única primeira-dama a acompanhar os chefes de Estado e teve que se retirar da foto oficial de Lula e Narendra Modi.
Outro exemplo ocorreu neste ano, em Portugal. Janja foi criticada por contrariar o protocolo diplomático e acompanhar Lula em reuniões com o presidente português Marcelo Rebelo de Souza e com o primeiro-ministro António Costa, que não levaram suas mulheres.
2. Comendas e honrarias do Brasil e exterior
A primeira-dama do Brasil, sem histórico em cargos públicos ou destaque em outras áreas, foi agraciada com diversas comendas e honrarias, tanto no Brasil quanto em outros países, reconhecendo seu papel e influência na diplomacia brasileira e em questões sociais.
Entre elas está a Ordem Cruzeiro do Sul, a maior do Estado brasileiro. Janja também recebeu a medalha francesa Ordem Nacional da Legião de Honra, concedida pelo presidente Emmanuel Macron e a portuguesa Grã-Cruz da Ordem Infante D. Henrique presenteada pelo presidente social-democrata Marcelo Rebelo de Souza. Em Portugal, a primeira-dama brasileira foi criticada pela direita por receber a maior honraria do país sem ter feito nada por aquela nação.
3. Chefe de missões oficiais
Em algumas ocasiões, Janja foi designada para chefiar missões oficiais dentro do Brasil, representando o governo em eventos e compromissos que exigem a presença de uma figura de alto escalão, como nas enchentes no Rio Grande do Sul em 2023. Similarmente, ela também liderou delegações brasileiras em missões internacionais, falando em nome do país em foros de promoção da paz e combate à fome. Chegou a ser enviada no ano passado para representar o Brasil na ONU.
Janja teve participação ativa em recente evento preparatório do encontro de cúpula do G20, a ser realizado em novembro no Rio de Janeiro. Na oportunidade, ela criou embaraços à organização do Ministério das Relações Exteriores ao falar como representante do governo e gravar vídeo divulgado nas suas redes sociais, no qual enalteceu o anúncio feito por Lula da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
4. Reformas e compras para os palácios do Alvorada e do Planalto
Janja esteve envolvida na supervisão e decisão sobre reformas e aquisições para as residências oficiais, como o Palácio da Alvorada e o Palácio do Planalto, exercendo influência direta nas escolhas e nos processos de modernização desses espaços. Suas escolhas chamaram a atenção pelo elevado preço dos itens.
A maior polêmica veio da reforma de seu próprio gabinete no terceiro andar do Planalto, próximo de onde despacha o presidente. Em julho, uma reforma deu literalmente área extra à primeira-dama, impactando profissionais de outras áreas que assistem Lula. Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo e do portal UOL, o conselheiro internacional Celso Amorim, o “chanceler de fato”, foi deslocado e Fernando Igreja, chefe do cerimonial da Presidência, além de Clara Ant, assessora especial, tiveram de ceder espaços.
Janja pediu a recuperação da Praça dos Três Poderes em razão de danos causados pelos protestos do 8 de Janeiro. A demanda dela foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e as obras foram suspensas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), atendendo recurso de empresa derrotada na licitação tocada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan).
5. Quase compra de um novo avião presidencial
Após informações de bastidores trazidas pela imprensa, soube-se que Janja desempenhou um papel significativo nas discussões sobre a aquisição de um novo avião presidencial, demonstrando sua participação ativa em decisões logísticas e de infraestrutura do governo. A nova aeronave, estimada em R$ 400 milhões, substituiria o Airbus A319-ACJ. Atendendo a exigências do casal presidencial, a Força Aérea Brasileira encontrou um Airbus A330-200 registrado em nome de uma empresa com sede na Suíça para substituir o chamado Aerolula, comprado em 2004, por US$ 56,7 milhões.
Um grupo de deputados da oposição chegou a apresentar uma ação na justiça para barrar a compra do novo “Aerolula”, alegando que isso representaria um “gravíssimo dano ao erário público, desvio de finalidade e afronta ao princípio da moralidade”. A repercussão negativa da notícia fez Lula desistir da compra.
6. Escolha e substituição de ministros
Janja teve participação na escolha e na substituição de ministros, desde a transição de governos, procurando indicar mulheres, como Margarete Menezes, da Cultura, segundo fontes do governo. O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, também é considerado de seu grupo.
Ela foi consultada e influenciou as escolhas para cargos de alto escalão no governo, o que sublinha a sua importância na estrutura de poder. Nas suas primeiras entrevistas como mulher do presidente, afirmou que tem papel de “articuladora” e que não gostaria de ter função decorativa no governo.
O posicionamento de Janja remete à argentina Eva Perón (1919-1952), com quem a primeira-dama já disse em entrevistas se identificar. Evita, como ficou conhecida, foi primeira-dama no regime populista de Juan Perón. Mesmo sem cargo oficial, ela atuou como ministra de fato da Saúde e do Trabalho da Argentina durante o primeiro mandato de seu marido, entre 1946 e 1952.
7. Conselheira de Lula no 8 de Janeiro e parceria com ministros
Após os eventos de 8 de janeiro, Janja teria, segundo Lula, atuado de forma decisiva como conselheira próxima dele, ajudando a moldar a resposta do governo à crise, impedindo que prosperasse o pedido de decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ex-funcionária de Furnas, ela tem atuado para influir no setor energético. No caso do apagão de agosto de 2023, ela se apressou para associar o episódio à privatização da Eletrobrás, sendo respaldada pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.
8. Presença em reuniões ministeriais
Janja frequentemente participa de reuniões ministeriais, com posição de destaque na mesa, apesar de não ter cargo oficial no Planalto, contribuindo para as discussões e decisões estratégicas do governo. Isso reforça sua posição como uma figura influente no núcleo duro de poder do Palácio do Planalto.
9. Reuniões estratégicas do PT, como foco na agenda das mulheres
A primeira-dama desempenha um papel ativo em reuniões estratégicas do Partido dos Trabalhadores (PT), com foco especial em apoiar e orientar candidatas mulheres. Sua participação inclui ajudar a definir estratégias de campanha, comunicação e políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade de gênero e protagonismo feminino dentro do partido e na esfera política.
Essa área de atuação no campo da propaganda é considerada estratégica para o partido, pois as mulheres representam quase 53% do eleitorado apto a votar.
10. Atuação na estratégia de comunicação do governo
Com grande destaque, Janja está envolvida na formulação e execução da estratégia de comunicação do governo, sobretudo na área digital. Ela contribui para a criação de conteúdos, sobretudo os caseiros e informais com Lula, além de campanhas online e a gestão das redes sociais oficiais. Seu objetivo é melhorar a imagem do governo, promover suas políticas e criar engajamento com a população de forma mais direta e eficaz por meio das plataformas digitais. Uma das primeiras tentativas de avançar na área foi trazer Jean Willys para a Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência, o que não ocorreu devido a atritos entre o ex-deputado e o titular da pasta, Paulo Pimenta.
Substituição de presidente por familiar corrompe a democracia, diz especialista
Segundo assessores parlamentares e consultores jurídicos ouvidos pela Gazeta do Povo, o esforço de Lula para dar protagonismo à primeira-dama, driblando as limitações impostas pela Constituição a parentes de governantes e profissionais sem cargo ou função pública, dificilmente se enquadraria como um dos crimes de responsabilidade listados pela Lei do Impeachment. No entanto, com uma fundamentação robusta, essas iniciativas poderiam ser consideradas, em alguma medida, como improbidade administrativa.
Para Madeleine Lacsko, escritora e ativista da liberdade de expressão, o colapso da democracia por dentro começa com a deterioração das instituições democráticas. Nesse sentido, ela vê na representação extraoficial de Lula por Janja em eventos oficiais “algo grave, longe de ser mero detalhe”.
“Existem regras para representar a instituição Presidência da República, com um presidente e um vice eleitos, além de uma linha sucessória de autoridades legítimas que os substituem na ausência deles. Essas regras podem e devem ser cobradas do presidente,” afirma.
Madeleine critica a banalização do cargo público quando o titular decide ser substituído por um familiar, pois, “apesar de parecer bobagem, isso diminui a instituição e corrompe a democracia”.
Parlamentares da oposição cobram explicações sobre ida de Janja a Paris
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) anunciou que cobrará do Itamaraty informações sobre a credencial de Janja, que recebeu tratamento de chefe de Estado na França, alegando que o Comitê Olímpico Brasileiro foi “praticamente forçado” a dar essa credencial. Ele também pretende representar à Procuradoria-Geral da República (PGR) para investigar possível abuso de autoridade pelo governo, pois “o Brasil não pode ser representado em evento oficial por quem não foi eleito”.
Os deputados do Novo Adriana Ventura (SP), Gilson Marques (SC) e Marcel van Hattem (RS) enviaram um requerimento de informação ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, solicitando esclarecimentos sobre a comitiva que acompanhou a primeira-dama. Ventura destacou a necessidade de responsabilidade e transparência no uso de recursos públicos. A deputada Julia Zanatta (PL-SC) também quer saber sobre os gastos de Janja em Paris, questionando a legalidade de suas viagens e insinuando a possibilidade de sigilo sobre essas despesas.
Janja chegou à capital francesa em 25 de julho e retornou ao Brasil no dia 29. Durante os quatro dias, ela cumpriu agendas de chefe de Estado. Além de participar da inauguração dos Jogos Olímpicos, foi recepcionada pelo presidente Emmanuel Macron e se encontrou com ministros brasileiros, prefeitos de várias cidades, representantes de bancos e financiadores.
Foi a primeira vez que o governo brasileiro foi representado na Olimpíada pela mulher do presidente da República. Janja conseguiu a credencial para o Executivo fora do prazo estipulado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para envio dos nomes de autoridades. Embora a missão dela com sete assessores tenha sido oficial, a assessoria de Janja não divulgou previamente sua agenda, tornando-a pública apenas após pressão da imprensa. O local de hospedagem também foi ocultado, mesmo se tratando de compromissos públicos.
A Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria pessoal da primeira-dama desde a semana passada para obter a sua versão sobre os fatos listados, especialmente os questionamentos sobre a reforma de seu gabinete no Planalto e suas viagens oficiais, mas não recebeu retorno até o fechamento da reportagem.
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