“O aborto apresenta um profundo dilema moral sobre o qual os norte-americanos têm visões bastante divergentes”, escreve o justice (magistrado da Suprema Corte) Samuel Alito logo no início da opinião majoritária que decretou a revogação de Roe v. Wade e Planned Parenthood v. Casey, as decisões de 1973 e 1992 que impediam os estados de proibir o aborto durante ao menos parte da gestação. A constatação de Alito é uma verdade não apenas sobre os Estados Unidos, pois não há país no mundo em que a população não se veja dividida a respeito do aborto e de como ele deveria ser legalmente regulado, e isso também se aplica ao Brasil.
O cenário se torna ainda mais complexo porque temas como o aborto não aceitam apenas visões “preto no branco”: entre uma proibição completa e uma legalização total do aborto por quaisquer motivos, em qualquer momento da gestação, existe uma miríade de posições intermediárias. Há quem defenda que a prática seja legal apenas até determinada semana de gestação, ou até algum marco do desenvolvimento fetal como o aparecimento de batimentos cardíacos, ou sensitividade à dor; também existe quem aceite a legalização apenas em determinadas circunstâncias envolvendo a gravidez, como estupro, incesto, risco de vida para a mãe ou possibilidade de sobrevivência extrauterina da criança. E esses dois critérios podem ser combinados para resultar em uma variedade gigantesca de possibilidades.
Muitas pessoas defendem ao menos algum grau de legalização do aborto não por algum tipo de “instinto assassino”, mas com enorme boa fé, guiadas pelas convicções que tenham sobre questões como o início da vida humana ou uma hierarquia de direitos
Tais posicionamentos derivam de uma série de informações e concepções prévias que cada pessoa carrega a respeito, por exemplo, do marco a partir do qual se considera existir uma vida humana; do grau de proteção legal que a vida intrauterina merece em comparação com pessoas já nascidas; de uma hierarquia entre direitos da mãe e do filho que carrega no ventre; ou, ainda, do conhecimento a respeito do nível atual de tecnologia médica que podem ser empregada no cuidado da gestante e do feto. E isso nos traz a um ponto crucial na discussão sobre o aborto: é preciso reconhecer que muitas pessoas defendem ao menos algum grau de legalização do aborto não por algum tipo de “instinto assassino”, mas com enorme boa fé, guiadas pelas convicções que tenham sobre ao menos alguns dos assuntos que acabamos de mencionar.
Haverá, por exemplo, quem considere não haver vida humana digna de proteção legal até um determinado estágio do desenvolvimento embrionário ou fetal, e que por isso a autonomia da mulher deveria prevalecer sobre um suposto direito à vida do embrião ou do feto. Ou quem considere que circunstâncias especialmente traumáticas envolvendo a gravidez justifiquem a possibilidade de sua interrupção. A Gazeta do Povo entende que tais convicções são profundamente equivocadas, fruto de concepções errôneas sobre a importância do direito à vida ou sobre o que constitui um ser humano, e sempre se esforçará para esclarecer seus leitores sobre o assunto, oferecendo uma visão abrangente da dignidade intrínseca de todo ser humano. Mas também reconhece que o discurso que defende a legalização do aborto merece carta de cidadania em uma sociedade democrática. Como escrevemos em novembro de 2018, “é da própria natureza da democracia que o debate público esteja aberto a um leque amplíssimo de posições a respeito dos mais diversos temas, inclusive os temas morais. Este leque abarca diversas concepções de Estado e do que seja o bem comum, noções de verdade, beleza e bondade, e a democracia dá carta de cidadania tanto às ideias mais à esquerda quanto as liberais, as libertárias e, obviamente, ao ideário dito ‘conservador’”. No debate público, ideias são contestadas por outras ideias, não por proibições ou censuras.VEJA TAMBÉM:
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Mas, de forma bastante triste, percebemos que esta “carta de cidadania” parece ser negada a quem defenda a vida, como se a promoção dos direitos do nascituro não tivesse lugar em uma sociedade democrática, merecendo o mesmo ostracismo que se concede – acertadamente – a ideologias totalitárias ou desumanizantes. Para quem quer eliminar da arena pública o discurso pró-vida, ser contrário à legalização do aborto e agir na defesa de ambas as vidas, da mãe e da criança, seria algo digno de reprovação, de ridicularização, de cancelamento e até mesmo de perseguição. Nos Estados Unidos, esse verdadeiro ódio ao pensamento pró-vida transparece em agressões e vandalismo até mesmo contra centros que auxiliam mulheres grávidas – em uma cruel ironia, já que os defensores da legalização do aborto se intitulam “pró-escolha”, mas querem inviabilizar a ajuda às gestantes que escolhem levar sua gestação até o fim. No Brasil, essa mesma aversão ficou evidente na repercussão da decisão da Suprema Corte americana, nos ataques a uma recente norma técnica do Ministério da Saúde e, especialmente, no tratamento dado à juíza Joana Ribeiro Zimmer e à promotora Mirela Dutra Alberton, que atuaram no caso de uma pré-adolescente catarinense de 11 anos que havia engravidado.
Neste último caso, a opinião pública e os tribunais da imprensa e das mídias sociais, com base em uma versão bastante editada do vídeo de uma audiência, foram muito além do que seria a manifestação da discordância por meio de uma crítica possível e legítima, ainda que expressa de forma mais dura ou enfática, à atuação das duas profissionais do Direito. Em vez disso, promoveram uma campanha sórdida de desmoralização da juíza e da promotora, como se o único desfecho possível e aceitável para o caso fosse a realização do aborto, por mais que houvesse tecnologia médica capaz de garantir a saúde da menina (mesmo com sua pouca idade) e do bebê, e apesar das novas normativas do Ministério da Saúde que desaconselham o aborto a partir de 21 semanas e seis dias de gestação. Qualquer outra solução, como a antecipação do parto com a entrega do bebê para adoção, foi amplamente tratada pelos críticos não como uma opção válida, ainda que para eles não fosse a melhor, mas como algo inaceitável, hediondo, uma tortura, um crime, uma nova violação, como chegou a afirmar uma colunista de um jornal carioca.
A militância favorável ao aborto padece de um enorme déficit democrático ao não ter a menor disposição em coexistir democraticamente com o discurso pró-vida
A virulência da reação – e aqui também incluímos a repercussão da norma técnica do governo brasileiro e da decisão da Suprema Corte americana, com reportagens e comentários que não raro distorceram completamente seu sentido real – mostrou que jornalistas e formadores de opinião nem sequer consideraram a razoabilidade do argumento pró-vida, nem as alternativas propostas para salvar mãe e filho. Demonstraram, com sua atitude, um descolamento completo em relação a uma parcela significativa de brasileiros que, mesmo cientes da dor de uma menina e de sua família, rejeitaram o aborto como a única ou a melhor solução para um caso em que a ciência e o direito permitiam desfechos diferentes e benéficos a todos os envolvidos.
E, assim, Joana Zimmer e Mirela Alberton, que agiram dentro da discricionariedade que a lei lhes garante, estando de posse de todas as informações sobre o caso – ao contrário do público, a quem foram negados detalhes importantes que só agora estão surgindo, demonstrando que o vídeo foi manipulado para criar uma determinada narrativa –, receberam não o benefício da dúvida, nem uma crítica razoável, mas apenas ódio puro e simples da opinião pública e investigações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público, o que certamente jamais aconteceria se houvessem permitido a realização do aborto. Sem terem feito nada de errado, estão sendo tratadas como se tivessem cometido um erro maior que o de quem violentou e engravidou a menina (ou permitiu que isso ocorresse, em caso de relação consensual), ou de quem vazou o vídeo, expondo nacionalmente uma família cuja intimidade deveria estar resguardada pelo segredo de Justiça.
Em várias ocasiões, já afirmamos que o grau de evolução de uma sociedade se mede não tanto pela prosperidade material, mas pela forma como ela trata os seus membros mais vulneráveis, incluindo o mais indefeso e inocente de todos os seres humanos, aquele que ainda está no ventre da mãe. Mas outra medida de maturidade está na forma como uma sociedade lida com a divergência em temas nos quais o debate público e a lei permitem uma enorme gama de posicionamentos e atitudes. O tratamento dispensado a Joana Zimmer e Mirela Alberton demonstrou que a militância favorável ao aborto padece de um enorme déficit democrático ao não ter a menor disposição em coexistir democraticamente com o discurso pró-vida; a “escolha” de alguém não merece respeito apenas quando coincide com a “escolha” prévia feita pela própria militância.
Fonte: Gazeta do Povo
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