Como o envenenamento de opositores virou tradição na Rússia com laboratório fundado por Lênin

AA0180CPAB. FRIBURGO (SUIZA), 02/05/2018.- El magnate petrolero ruso y dueño del Chelsea FC, Roman Abramovich, llega a los juzgados de Sarine en Friburgo (Suiza) hoy, 2 de mayo de 2018, para asistir al comienzo de la instrucción del procesamiento civil tras la denuncia del Banco Europeo para la Cooperación y el Desarrollo (EBRD) contra Abramovich, Yevgueni Svidler y Gazprom, por no devolver un préstamo que, con intereses, asciende a 38 millones de euros, según el EBDR. EFE/ Anthony Anex

O oligarca russo Roman Abramovich e dois negociadores de paz ucranianos tiveram sintomas de envenenamento este mês| Foto: EFE/Anthony Anex
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A notícia de que o oligarca russo Roman Abramovich, dono do clube inglês de futebol Chelsea, e dois negociadores de paz ucranianos tiveram sintomas de envenenamento (olhos vermelhos, lacrimejamento constante e doloroso, perda temporária da visão e descamação da pele do rosto e das mãos) após uma reunião em Kiev, no início de março, chamou a atenção, mas não foi exatamente uma surpresa.

O uso de veneno contra inimigos e ex-aliados (no caso de Abramovich e dos negociadores, seria uma tentativa de sabotar as tratativas de paz com a Ucrânia) que, por alguma razão, caíram em desgraça aos olhos do poder central, é uma arma de séculos na Rússia, mas que se acentuou a partir de 1921.

Naquele ano, o líder bolchevique Vladimir Lênin estava no poder e foi criado o primeiro laboratório para produção de venenos dentro do serviço secreto soviético, sob o nome de “Escritório Especial”.

Ao longo das décadas, a unidade, depois conhecida como Lab X e Kamera (“câmara” em russo), abasteceu as diferentes encarnações do serviço secreto do regime comunista (como OGPU, NKVD e KGB, que após o fim do comunismo se desmembrou em dois órgãos, FSB e SVR) com venenos difíceis de detectar. No regime de Josef Stálin, produtos teriam sido testados em detentos dos gulags, os campos de prisioneiros soviéticos.

“Eles devem fazer a morte ou doença da vítima parecer natural ou pelo menos produzir sintomas que irão confundir médicos e investigadores forenses. Para esse fim, a Kamera desenvolveu sua especialidade definidora: combinar venenos conhecidos em formas originais e não rastreáveis”, afirmou Boris Voldarsky, ex-agente da inteligência militar soviética, em um artigo publicado no The Wall Street Journal em 2005.

Essa dificuldade de rastreamento, claro, serve para que Moscou negue envolvimento quando envenenamentos são noticiados, embora os interesses políticos na eliminação de determinadas pessoas indiquem de forma nada sutil quem estaria por trás desses casos.

Em 1971, um ano após receber o Nobel de Literatura, o escritor Alexander Solzhenitsyn teve uma doença misteriosa que causou fortes queimaduras por todo o seu corpo e durou cerca de três meses. Anos depois, soube-se que Solzhenitsyn, que sobreviveu ao atentado, teria sido vítima de envenenamento pela KGB e que seus sintomas podem ter sido produzidos por um veneno chamado ricina.

Solzhenitsyn havia recebido o Nobel por “Arquipélago Gulag”, obra em que denunciava a crueldade dos campos de prisioneiros na União Soviética para onde eram enviados os “inimigos do povo”.

Putin negou extradição de acusados no Reino Unido
Vladimir Putin, que está no poder na Rússia há mais de 20 anos, não criou essa tradição, mas dá sequência a ela com entusiasmo – ex-oficiais de inteligência apontam que o Lab X ainda estaria em funcionamento, e agentes tóxicos também seriam desenvolvidos em outros laboratórios.

Embora o Kremlin negue publicamente qualquer participação quando um novo caso de envenenamento é anunciado, conexões e atitudes do governo russo deixam evidentes essas ligações.

Em 2006, o dissidente e ex-oficial do FSB Alexander Litvinenko morreu após beber chá que continha polônio-210, um isótopo radioativo, em um hotel de luxo em Londres. As investigações britânicas apontaram que Putin teria ordenado pessoalmente o assassinato e o governo russo se recusou a extraditar os dois acusados, Dmitry Kovtun e Andrey Lugovoy – este depois se tornou parlamentar na Duma, a câmara baixa russa.

Em 2018, investigações sobre a tentativa de envenenamento do ex-oficial de inteligência russo Sergey Skripal, também ocorrida na Inglaterra, apontaram como responsáveis dois integrantes da inteligência militar do país, Anatoly Chepiga e Alexander Mishkin, que haviam sido condecorados pessoalmente por Putin.

Skripal foi envenenado com um agente nervoso conhecido como Novichok, o mesmo utilizado em 2020 contra o líder oposicionista Alexei Navalny, que foi hospitalizado em estado grave na Alemanha. No ano passado, ao retornar ao país, Navalny foi preso pelas autoridades russas.

Na Ucrânia, o caso mais famoso foi o do ex-presidente pró-Ocidente Viktor Yushchenko (2005-2010), que, durante a campanha de 2004, sofreu envenenamento por dioxina e ficou desfigurado.

Não à toa, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, alertou os negociadores de paz que evitassem comer, beber ou tocar qualquer coisa nas conversas com os russos de terça-feira (29) para resolução do conflito iniciado com a invasão de 24 de fevereiro.

Para Dan Sabbagh, editor de defesa e segurança do jornal britânico The Guardian, embora ainda não tenha sido comprovado, o caso de Abramovich e dos negociadores de paz apresenta sérios indícios de que a máquina de envenenamento do Kremlin segue funcionando a pleno vapor.

“O Kremlin sempre negou envolvimento em envenenamentos. Mas apenas o Estado tem o poder para usar substâncias tão mortais e complexas”, argumentou, em artigo publicado no dia em que a informação foi divulgada.

“Além disso, a crescente centralização do poder estatal russo sob Putin leva à conclusão de que seria necessário um subalterno muito ousado para autorizar tal complô contra um oligarca de alto nível [Abramovich] sem obter autorização do topo”, destacou.

Fonte: Gazeta do Povo

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