A União Europeia se viu tomada por uma série de dilemas com a invasão russa da Ucrânia. Reverter completamente ou apenas parcialmente a política de aproximação comercial com a Rússia adotada desde a década de 1990? Aumentar a integração militar europeia ou expandir a cooperação no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte? Impor uma rígida política de sanções ou buscar uma posição de diálogo? São perguntas cujas respostas podem ser simples quando feitas no conforto de um distante lar no continente americano, mas precisam equilibrar diversos interesses, de curto e de longo prazo. Talvez o principal desses dilemas seja o da guerra energética. Afinal, pode, e como, a Europa viver sem o gás natural importado da Rússia?
Antes de tudo, é necessário fazer um lembrete constante aqui em nosso espaço. O que guia as relações dos Estados são seus interesses, não julgamentos morais. Esses podem fazer parte do cálculo, especialmente via pressão popular, mas não serão, nunca, os únicos motivadores de uma decisão. Mesmo quando uma ação que se propõe moralmente correta é tomada para agradar a população, ou seja, o eleitorado, também existe o interesse embutido ali. Outra questão importante é que os interesses de aliados não são, necessariamente, os mesmos. Sobre isso, em janeiro, publicamos aqui em nosso espaço a coluna A ilusão de uma postura unânime da Otan sobre a Ucrânia.
O interesse dos EUA será um. O do Reino Unido, outro. E os países da Europa continental terão vários interesses, diversos dos anteriores e entre si. Mesmo quando o governo dos EUA fala de uma necessidade moral de não fazer comércio com a Rússia e de punir a economia russa pela guerra de agressão, existe ali o interesse. Historicamente, a política externa dos EUA é motivada por interesses transmitidos numa embalagem idealista e moral. Essa postura é, em síntese absoluta, derivada do isolamento geográfico em relação aos seus rivais, do pensamento do Destino Manifesto e da ideologia do Excepcionalismo dos EUA, questões, claro, mais profundas do que essas breves linhas.
A questão é que, por trás do discurso da necessidade moral, está o fato de que os EUA podem, primeiro, viver sem o comércio com a Rússia. Apenas 3% do petróleo consumido nos EUA é de proveniência russa, por exemplo, proporção similar ao petróleo importado da Colômbia. Segundo, é do interesse dos EUA afastar seus aliados europeus do consumo de hidrocarbonetos russos, tanto para eventualmente suprir esse mercado com suas exportações, quanto para arrefecer as relações entre Europa e Rússia. Para Washington, é melhor ver a Europa comprando petróleo das suas ditaduras aliadas do Golfo Pérsico do que de um governo antagônico como o de Moscou. Dificilmente uma decisão moral.
Faca de dois gumes
A mesma coisa vale para os países europeus. A intensa relação comercial com a Rússia é uma faca de dois gumes. Em tempos de paz, é uma situação de ganhos mútuos. Os russos vendem grande quantidade de gás natural para a Europa e recebem em moeda forte, como dólar ou euro. Já os europeus contam com uma fonte energética constante e geograficamente próxima, com uma infraestrutura eficiente e relativamente simples, que permite preços baixos. Por vezes alguns colegas da imprensa falam de uma “dependência europeia” do gás russo como se fosse por amor ou por alguma especificidade do gás natural russo, talvez um perfume especial. Não, é interesse econômico.
A proximidade geográfica e a estrutura de gasodutos permitem um fluxo constante de gás, logo, contratos baseados em volume, com preços mais baratos. Caso os países europeus desejassem importar gás natural dos EUA, por exemplo, teriam que administrar terminais portuários para lidar com gás natural liquefeito. Muito mais custoso e perigoso do que um gasoduto moderno. Qual o outro gume da metafórica faca? Olhe-se para a crise atual. A Europa precisa lidar com o fato de que um país parceiro comercial invadiu outro país soberano. A pressão, local, regional e global, por sanções é enorme, incluindo de um aliado que é a maior economia do mundo. As divisas que o gás natural rendem aos russos vão diretamente para o esforço de guerra do país. Deixar ou não de consumir o gás natural da Rússia torna-se parte da guerra, agora energética.
Se os países europeus deixarem de consumir o gás natural russo, podem sofrer um déficit de energia, falta de gás para consumo doméstico e o maior pesadelo de qualquer governante em uma democracia, a inflação de preços. Se não fizerem nada, parecerão aprovar uma guerra de agressão. Mesmo outras sanções podem, supostamente, “irritar” a Rússia, que “fecha o registro” do gás e deixa a Europa ocidental com frio. Ao mesmo tempo, isso não é do interesse russo, que precisa vender o seu gás para a Europa. Não conseguem materializar armas ou comida feitas de gás natural, e o novo gasoduto que vai transportar mais gás para o mercado chinês ainda demorará alguns anos para ficar pronto.
É como um impasse em que dois personagens de um filme apontam suas armas um para o outro, mas a arma, nesse caso, é econômica. A Rússia faz do seu fornecimento de gás natural uma vantagem estratégica em seu poder de barganha com os países europeus? Sem dúvida, a “acusação” feita por Washington é como dizer que o Sol é brilhante. A questão, esse tempo todo, é que isso também é do interesse europeu. Energia fácil e barata, a base para qualquer desenvolvimento econômico. A relação é mútua. Cerca de 40% do orçamento federal russo é proveniente da exportação de petróleo e gás. A Rússia é o maior exportador de gás natural do mundo, com 60% tendo a União Europeia como destino, que também compra 50% do petróleo russo.
Claro que essa compra não é homogênea. Como mencionamos, mesmo os países europeus possuem interesses diversos entre si. Cerca de 40% das importações de gás, 47% das importações de carvão natural e 27% das importações de petróleo europeias são provenientes da Rússia, que é o maior fornecedor dos três produtos. Cerca de metade do gás consumido na Alemanha, a maior economia europeia, vêm da Rússia. Quase todo o gás natural consumido da Finlândia vêm da Rússia, assim como 46% do gás natural consumido na Itália e 40% do consumido na Polônia. Outros países, entretanto, pouco consomem gás russo. São os casos de França e de Espanha.
Diversificar parceiros?
No caso da Espanha, seu fornecimento de gás vem especialmente da Argélia, via o Marrocos. Em novembro de 2021, devido às tensões entre os dois vizinhos do norte da África, a Argélia “fechou o registro” do gás, para retaliar o Marrocos. Consequência? A Espanha se viu em uma pequena crise energética. Como o gasoduto passa por terras marroquinas, o país fica com dividendos dos royalties da venda. É por esse mesmo motivo que alguns países do leste europeu protestavam contra o gasoduto Nord Stream 2, que ligaria a Rússia e a Alemanha diretamente, pelo Báltico, “contornando” o leste europeu. Consequentemente, sem royalties. Novamente, o interesse é a orientação.
Já no caso francês, o país é o terceiro maior gerador de energia nuclear, que corresponde a cerca de 70% do consumo energético do país. Macron, em campanha para reeleição, já anunciou a expansão da capacidade energética nuclear de seu país. Recentemente, a Finlândia inaugurou um novo reator nuclear, o primeiro novo reator na Europa desde o acidente nuclear de Fukushima, em 2011. Por isso que a França pressiona a Alemanha para “fazer a coisa certa” e deixar de consumir o gás russo. A França pode fazer isso, a Alemanha não. São interesses diferentes. E citar os casos da Espanha e da França é importante, afinal, muito se fala e se discute sobre a dependência energética europeia em relação ao seu comércio com a Rússia, mas quais são as alternativas? Como se trava uma guerra energética sem cartas na manga?
As alternativas se dividem, existem as de curto prazo e as de longo prazo. No curto prazo, inclusive, são pouquíssimas alternativas. Tanto que, enquanto esta coluna é escrita, a União Europeia ainda consome vastas quantidades de energia russa. Melhor dizendo, existem alternativas: frio, escassez e inflação. O governo alemão foi rápido em suspender o novo projeto do Nord Stream 2, mas o Nord Stream 1 continua funcionando. Inclusive, sua construção permitiu contornar o antigo gasoduto que passava por território ucraniano, rendendo royalties para Kiev. Sobra, então, a possibilidade de diversificar parceiros, algo que, mesmo assim, é pouco viável no curto prazo.
No último domingo, o ministro da Economia alemão, Robert Habeck, se encontrou com o emir do Qatar para fechar um contrato de fornecimento de gás. A Bulgária, cujos contratos com a Rússia vencem justamente em 2022, anunciou que vai comprar gás do Azerbaijão. A Itália deve expandir seus negócios com a mesma Argélia que fornece gás para a Espanha. Irresistível não notar que Qatar, Azerbaijão e Argélia passam longe de serem bastiões da democracia liberal. Outra possibilidade de curto prazo é aumentar o consumo de carvão natural, mais poluente, o que desagrada as metas ambientais da União Europeia. Vários países europeus, inclusive, querem aproveitar a atual crise para acelerar suas “transições verdes”.
Longo prazo
No longo prazo estão duas possibilidades. Primeiro, a expansão da capacidade nuclear europeia. A Alemanha, infelizmente, progressivamente deixou de usar energia nuclear. Esse processo começou no governo Gerhard Schröder, que dependia de uma aliança com os Verdes, e foi intensificado no governo Merkel, após o trauma da tragédia de Fukushima. Curiosamente, isso fez a Alemanha precisar de mais gás natural russo. Uma aposta que, em 2005, parecia muito mais razoável do que se olhando hoje, claro. Além disso, existia um otimismo que não se cumpriu sobre novas fontes de energia, como a eólica.
De qualquer maneira, não se constrói reatores nucleares da noite para o dia, frisando o caráter de longo prazo. A outra possibilidade é a exploração de novos campos de gás natural dentro do território da União Europeia. Mais precisamente, dentro das águas europeias, como na costa da Grécia e do Chipre, situação que nossos leitores conhecem desde meados de 2020. Essa possibilidade, entretanto, representa eventual rota de colisão com a Turquia. O fato é que as soluções estão apenas no longo prazo e que, por alguns anos ainda, parte dos países europeus vai precisar importar gás natural da Rússia.
Uma das poucas coisas que poderia alterar essa realidade seria uma grande manobra econômica como um fundo comum europeu que custeie importações mais caras de outros fornecedores. Enquanto isso, a Rússia obviamente busca vantagens nessa relação. O governo russo estaria cogitando exigir pagamento em rublos pelo seu petróleo e seu gás natural importado por “países hostis”. Uma maneira de equilibrar a imensa perda de valor de sua moeda nacional e responder ao uso do dólar como arma econômica, como explicamos aqui recentemente. Tudo isso em meio à subida dos preços do petróleo. Enquanto milhões de pessoas fogem da guerra na Ucrânia, o mundo trava um tipo diferente de disputa, com outras armas, seja a moeda, seja a energia e o gás natural.
Be the first to comment on "O gás natural russo e a guerra energética da Europa"