A contagem mundial de mortos por COVID-19 acabou de atingir a marca de seis milhões, quase um milhão dos quais foram nos Estados Unidos. Poucas pautas científicas são mais importantes que entender de onde veio o vírus da covid. Ainda assim, os jornalistas de ciência mostraram-se estranhamente incapazes de contar a história direito.
Duas hipóteses há muito tempo estão na mesa. Uma é que o vírus saltou naturalmente de algum hospedeiro animal, como em muitas epidemias do passado. A outra é que escapou de um laboratório em Wuhan, onde se sabe que pesquisadores estavam manipulando geneticamente vírus de morcego para prever epidemias futuras. Ambas as hipóteses são plausíveis, mas até agora não há evidência direta para nenhuma delas.
A regra para cobrir esse tipo de pauta é óbvia: escrever a respeito de ambas as possibilidades da forma mais equilibrada possível até que a verdade emerja. Mas os jornalistas de ciência têm repetidamente alardeado quaisquer desenvolvimentos a favor da emergência natural enquanto minimizam ou ignoram os que apontarem para o vazamento laboratorial.
Foram abundantes as reportagens dos últimos dias a respeito de novos estudos que alegam provar que todos os primeiros casos da covid foram associados a um mercado de animais silvestres em Wuhan e que portanto o vírus deve ter saltado de um animal para pessoas lá. “Dois novos artigos defendem a hipótese de forma robusta”, disse a manchete crédula da Economist, típica de muitos artigos que insinuaram que o martelo estava batido. “A teoria do vazamento laboratorial está morta”, declarou a New Republic, com grande exagero.
Mas os novos artigos são meros pré-prelos, rascunhos não publicados que ainda não foram expostos aos rigores da revisão por pares. Um deles, de um grupo americano chefiado por Kristian Andersen do Instituto Scripps de Pesquisa, alegou que o mercado de animais foi a fonte da epidemia. O grupo de autores do segundo artigo — com liderança de George Gao, diretor do Centro de Controle de Doenças chinês — tinha todo incentivo para apoiar a alegação de Andersen, mas não o fez. Eles disseram apenas que “o mercado pode ter atuado como um amplificador devido ao grande número de visitantes diários”, o que já se sabia — em outras palavras, a atmosfera lotada e fechada do mercado ajudou o vírus a se espalhar de pessoa para pessoa, mas a epidemia não necessariamente começou por lá.
“Cientistas que não estavam envolvidos nos artigos estão dizendo que os novos dados são ‘muito convincentes’ e que ‘derrubam’ a teoria do vazamento laboratorial”, afirmou a NPR. Na verdade, os dados não se afastaram de forma alguma das evidências substanciais a favor do vazamento laboratorial. Também não oferecem evidência nenhuma de que o SARS-CoV-2 já existiu na natureza, a chave para provar que emergiu naturalmente. Nenhum animal testado no mercado tinha o vírus. Sendo assim, certamente é mais econômico presumir que as muitas amostras positivas do ambiente do mercado foram contaminadas por pessoas infectadas, não animais infectados.
Eis três defeitos dos novos artigos que a maioria dos jornalistas de ciência ignoraram:
Primeiro, mesmo se todos os primeiros casos tivessem se originado no mercado de animais, como defende o artigo de Andersen, não há modo de decidir se o vírus foi carregado até o mercado por um animal ou por uma pessoa cuja infecção veio de um laboratório. Isso faz o debate voltar à estaca zero.
Segundo, o grupo de Andersen está olhando o período errado para determinar a origem do vírus. A epidemia provavelmente começou entre setembro e o começo de dezembro de 2019. Mas os casos analisados no artigo deles datam de meados de dezembro ao fim do mês em 2019, quando a epidemia provavelmente já estava bem estabelecida e sua origem já obscurecida. “Esses autores estão tentando bater o martelo usando só casos da segunda quinzena de dezembro e é improvável que isso leve a alguma conclusão científica robusta a respeito de como e quando o surto começou”, diz Alina Chan do Instituto Broad, coautora do livro Viral.
Um terceiro defeito é um provável erro nos pressupostos estatísticos dos autores. Há tempos sabe-se que muitos dos primeiros casos da covid ocorreram em pessoas que não tinham nenhuma associação conhecida com o mercado de animais, o que parece que descarta o mercado como fonte da pandemia. O grupo de Andersen colocou os casos da segunda quinzena de dezembro em um mapa, mostrando que a distribuição espacial daqueles sem conexão com o mercado é muito similar à distribuição dos casos com conexão. Isso mostra, dizem eles, que até os casos aparentemente sem conexão provavelmente tinham ligações ocultas de infecção com o mercado que seria, portanto, a única fonte da epidemia.
O argumento é engenhoso. Sua falha fatal está em presumir que os casos sem conexão escolhidos para estudo foram selecionados ao acaso pelas autoridades chinesas. Na verdade, como notou Chan, um dos critérios das autoridades foi a proximidade ao mercado. O padrão espacial de casos sem conexão reflete esse viés de seleção, não uma ligação oculta de infecção com o mercado. “Já que o pressuposto deles de que não houve viés na amostragem é provavelmente incorreto, a análise assim fica sem sentido”, diz Chan.
Diferente da maioria dos colegas, os jornalistas de ciência raramente consideram as motivações de suas fontes. Poucos ou nenhum deles comentaram os profundos interesses pessoais de Andersen no resultado que ele está tentando provar. Ele e os colegas concluíram em 31 de janeiro de 2020 que o vírus da covid não tinha uma origem natural. Mas Francis Collins, então diretor dos Institutos Nacionais de Saúde [NIH], decretou de imediato que essa opinião era uma teoria da conspiração que faria “grande dano em potencial à ciência e à harmonia internacional”. Sem falar na sua própria reputação e a de seu subordinado Anthony Fauci. Ambos defenderam por muito tempo a pesquisa de ganho de função — que aumenta a infecciosidade de vírus naturais — e financiaram tal pesquisa envolvendo vírus de morcego no Instituto de Virologia de Wuhan.
Nenhum cientista quer antagonizar os administradores dos NIH, maiores financiadores da pesquisa biomédica. Se Collins disse que o vazamento laboratorial era uma teoria da conspiração, então assim deve ser. Quatro dias depois, Andersen mudou de ideia e chamou o vazamento laboratorial de teoria da conspiração. Ninguém em seu grupo deu uma explicação convincente para essa mudança de 180 graus. O novo artigo de Andersen, se for verdade, ajudaria muito a justificar essa mudança repentina na questão.
Por que é que os jornalistas de ciência relutam tanto em cobrir de forma objetiva a origem do vírus? Ingênuos a respeito de motivações humanas, ao contrário da maioria dos colegas céticos, os jornalistas de ciência consideram os cientistas, suas fontes com autoridade, altos demais no Olimpo para serem motivados por questões triviais tais como o interesse próprio. Seu trabalho diário é reproduzir as alegações de novas descobertas impressionantes, tais como avanços na direção da cura do câncer ou de fazer ratos paraplégicos andarem. A maioria dessas alegações não dão em nada — a pesquisa não é um processo eficiente —, mas os jornalistas de ciência, assim como os cientistas, tiram proveito de criar uma corrente incessante de ilusões aprazíveis. Os jornalistas ganham as suas matérias, enquanto a cobertura midiática ajuda os pesquisadores a atrair verbas do governo.
Entorpecidos pelas vantagens dessa cooperação, os jornalistas de ciência dão pouca atenção aos problemas internos que ameaçam de forma séria a credibilidade da empreitada da pesquisa científica, como o fato impressionante de que menos de metade das descobertas de destaque em algumas áreas podem ser reproduzidas em outros laboratórios. A fraude e o erro em artigos científicos são difíceis de detectar, mas ainda assim cerca de 32 mil artigos foram removidos por variadas razões. A confiabilidade das alegações científicas é um problema imenso, mas estranhamente atrai pouco interesse de muitos dos jornalistas de ciência.
Se descobrirmos que o vírus da covid de fato escapou de um laboratório em Wuhan, um tsunâmi de ira pública pode balançar as fundações do templo da ciência. Que os jornalistas de ciência se apressem em exaltar qualquer evidência a favor da emergência natural e ignorar tudo o que aponte para o vazamento laboratorial é algo que reflete o interesse das suas fontes.
Os jornalistas de ciência precisam decidir se o seu dever é para com os seus leitores ou as suas fontes. Uma das opções faz deles jornalistas de verdade, a outra faz deles agentes informais de relações públicas para a comunidade científica.
*Nicholas Wade é ex-editor de ciência do New York Times, de 1990 a 1996
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