Por que até agora a China não aplica vacinas de mRNA em seus cidadãos

O governo da China diz ter vacinado 87% de sua população contra a COVID-19 com vacina de tecnologia antiga do tipo Coronavac, da Sinovac e Sinopharm. O país recusou as vacinas de mRNA ocidentais, mas está desenvolvendo uma vacina própria com esta tecnologia através da Academia de Ciências Médicas Militares, parte do exército chinês, e das empresas Suzhou Abogen Biosciences e Walvax Biotechnology. A vacina, chamada ARCoV, vem na esteira de um reconhecimento de que a variante ômicron rompe a proteção conferida pela Coronavac. Está na fase III de testes.

Convencionou-se separar o desenvolvimento de vacinas em quatro fases:

  1. Aplica-se a vacina candidata em um pequeno número de voluntários jovens e saudáveis, para avaliar se há riscos com grande efeito, se gera anticorpos (imunogenicidade), e qual é a dosagem melhor.
  2. Aplica-se em centenas de voluntários para continuar avaliando segurança e imunogenicidade, dá-se foco a grupos que têm maior risco se pegarem a doença para a qual a vacina pode oferecer proteção. Esta fase pode envolver muitos estudos diferentes.
  3. Expande-se a amostra para milhares de voluntários, geralmente em diferentes localidades ou países, para investigar se os efeitos descobertos nas fases anteriores se mantêm em diferentes contextos e para diferentes grupos.
  4. Esta fase não é mencionada pela Organização Mundial da Saúde, mas seria a aplicação da vacina em milhões de pessoas e uma continuidade da avaliação da eficácia e dos efeitos adversos, especialmente os mais raros que não apareceram nas amostras menores das fases anteriores.

Em todas as fases, especialmente da segunda em diante, deve haver, além do grupo experimental que recebe a vacina, também um grupo que recebe placebo (alguma substância alternativa considerada inócua) e um grupo controle (que não recebe nada). Os próprios pesquisadores e pacientes, idealmente, não sabem quem está recebendo vacina ou placebo, para evitar vieses. Após a conclusão dos testes da fase III, essa anonimização pode ser removida.

Só o RBD

A ARCoV usa a mensagem molecular que instrui as células humanas a produzir um pedaço da proteína S de superfície do vírus conhecido como RBD, sigla em inglês para “domínio de ligação ao receptor”. É a região crucial que funciona como uma chave para destrancar a fechadura da célula (o receptor) e permitir que o vírus entre e se reproduza. A proteína S é a mesma usada na Comirnaty, da Pfizer-BioNTech.

No fim de janeiro, a Walvax anunciou que havia recrutado 28 mil participantes para a fase III. Seu-vice presidente, Huang Zhen, disse à Reuters que a empresa tem capacidade de produzir 400 milhões de doses, e que planeja expandir essa produção. O cientista fundador da Suzhou Abogen, Ying Bo, disse aos investidores que a ARCoV se saiu melhor quanto à febre dos pacientes na fase III, comparada às fases anteriores. A tranquilização dos investidores é necessária pois a ARCoV na dose escolhida para fase III causou febre severa em 30% dos participantes da fase I. A Suzhou Abogen desenvolveu sua própria nanopartícula lipídica para abrigar o mRNA, em vez de usar a mesma das vacinas da Pfizer e da Moderna. Os resultados da fase I foram relatados na revista Microbe, do grupo da revista The Lancet.

Mas há outros problemas de outra ordem na fase III. Segundo o jornal The Kathmandu Post, os testes da ARCov no Nepal foram cancelados por falta de doses e outros equipamentos necessários. O cancelamento decepcionou 3.000 nepaleses que se envolveriam na amostra e muitos médicos, enfermeiras e trabalhadores da saúde. O governo do país declarou que há duas outras vacinas em fase III no país, como a da também chinesa WestVac Biopharma. Este estudo está registrado no banco de ensaios clínicos do governo americano (assim como a fase III da ARCoV), está em fase de recrutamento de 40 mil participantes. A vacina da WestVac usa vírus recombinante, mesma tecnologia da AstraZeneca-Oxford. Assim como a ARCoV, no entanto, usa o pedaço RBD em vez de a proteína S inteira.

Após o cancelamento no Nepal, a ARCoV continua sendo testada na China, México, Malásia e Indonésia. Colômbia, Paquistão e Turquia estão na lista de países considerados para testes futuros. O imunizante pode ser mantido em temperatura ambiente por uma semana e entre dois e oito graus centígrados por seis meses. Sua eficácia deve esperar a conclusão da fase III para ser devidamente estimada.

Relação com o governo Chinês

Além de o financiamento da ARCoV vir de uma organização subsidiária ao Exército de Libertação Popular, braço armado do Partido Comunista Chinês, as empresas envolvidas dificilmente escapam da influência de Xi Jinping. Quando ele ascendeu ao poder em 2012, reenfatizou o papel do Estado no mercado, infiltrando as empresas privadas. Uma lei nacional de inteligência do país, de 2017, diz que “qualquer organização ou cidadão deverá apoiar e cooperar no trabalho de inteligência nacional”.

A Austrália citou esta lei para manter a empresa chinesa de tecnologia Huawei longe da implementação do 5G no país. Existe certa flexibilidade e o governo da autocracia não conseguiria interferir em todas as empresas mesmo se o quisesse. Porém, em se tratando de farmacêuticas produzindo imunizantes para uma pandemia global, dificilmente este é o caso.

Fonte: Gazeta do Povo

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