O STF e a vacinação de crianças contra a Covid

O secretário municipal de Saúde do Rio, Daniel Soranz mostra vacina contra Covid-19 para crianças, no Rio de Janeiro

Um tribunal explicitamente disposto a se portar como governo paralelo no que diz respeito ao combate à pandemia de Covid-19, e um partido cuja especialidade é buscar o Judiciário para conseguir impor as plataformas que sua ínfima representatividade parlamentar impede de implantar por meio do locus correto, que é o Legislativo. Essa combinação daninha para o Brasil voltou a dar as caras no confuso despacho do ministro Ricardo Lewandowski, amplamente interpretado como uma autorização para que o Ministério Público de todos os estados e do Distrito Federal pudesse multar e até mesmo propor ações judiciais contra pais que não vacinarem seus filhos contra a Covid-19 – extrapolando o que a Rede Sustentabilidade havia solicitado, já que o partido desejava que a fiscalização e a aplicação de punições como multas ficasse a cargo dos conselhos tutelares.

A vacinação de crianças é tema ainda bastante controverso. A Organização Mundial de Saúde (OMS), embora reconheça possíveis benefícios, já afirmou que ela não seria prioridade diante da necessidade de vacinar ou reforçar a imunização de outros grupos mais propensos a desenvolver formas severas da Covid-19. Um outro texto da OMS, atualizado em 5 de janeiro, refere-se especificamente à vacina da Pfizer, afirmando que, na falta de dados sobre eficácia e efeitos colaterais em crianças abaixo de 12 anos, elas não deveriam ser “rotineiramente vacinadas” com este imunizante específico até que houvesse informações mais aprofundadas. É justamente esta vacina que estava destinada a crianças de 5 a 12 anos no Brasil, após aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Saúde.

Não há como tratar a recomendação da vacina contra a Covid no mesmo nível de uma recomendação de outras vacinas que já carregam consigo longos períodos de estudo e observação

A Rede alega que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 14, afirma que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias” – qualquer pai e mãe brasileiro está familiarizado com o calendário vacinal, e está ciente inclusive da necessidade de imunizar seus filhos para poder, por exemplo, matriculá-los em uma escola. No entanto, o Ministério da Saúde afirmou explicitamente que a vacinação contra a Covid não seria obrigatória. O ato normativo diz: “Diante do deferimento do pedido de ampliação de uso do imunizante Comirnaty para crianças de 05 a 11 anos de idade, cuja segurança e eficácia foi atestada pela Anvisa, a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 (Secovid) recomenda a inclusão da vacina Comirnaty, de forma não obrigatória, para esta faixa etária”. A Rede questionou essa ressalva, argumentando que, pelo artigo 14 do ECA, a obrigatoriedade é decorrência direta da vacinação e que o Ministério da Saúde, portanto, não teria como “recomendar sem obrigar”.

Em seu brevíssimo despacho, Lewandowski nem chegou a analisar esta questão, mas esclarecê-la seria fundamental. Pois a vacina contra a Covid tem uma diferença essencial em relação a outras vacinas cuja obrigatoriedade é aceita sem problemas: ela não consta do Plano Nacional de Imunização (PNI), apenas no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO), aspecto ressaltado por juristas que criticaram a determinação. Além disso, é preciso levar em conta a própria natureza da recomendação. Trata-se de uma situação sui generis, em que estamos diante do uso emergencial de uma vacina ainda experimental. Como afirmamos anteriormente neste espaço, “as aprovações definitivas de autoridades sanitárias mundo afora são um trâmite burocrático necessário, mas não evitam o fato de que é preciso esperar um período de tempo mais longo até haver conclusões mais sólidas sobre efeitos colaterais e que grupos estariam mais suscetíveis a eles”. Não há como tratar a recomendação da vacina contra a Covid no mesmo nível de uma recomendação de outras vacinas que já carregam consigo longos períodos de estudo e observação.VEJA TAMBÉM:

Se, portanto, é, sim, possível “recomendar sem obrigar” e foi exatamente isso que o Ministério da Saúde fez, o despacho de Lewandowski estaria anulando a diretriz do Poder Executivo e impõe, na prática, a imunização das crianças de forma compulsória por via judicial. Isso atropelaria a previsão constitucional do artigo 5.º, II, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Aqui reside a grande hipocrisia de muitas políticas públicas de combate à pandemia: a Lei 13.979/20 permitiu que estados e municípios estabelecessem a vacinação compulsória, mas nenhum prefeito, governador, câmara municipal ou assembleia legislativa o fez até hoje. Em vez disso, prefere-se recorrer a medidas desproporcionais que criam obrigações de vacinação por vias oblíquas, como os tais “passaportes de vacina”, ou a canetadas do Supremo. Na ausência de lei ou determinação do Ministério da Saúde ou da Anvisa que obriguem a vacinação de crianças contra a Covid, a Rede pede e Lewandowski estaria assumindo o papel de gestor e legislador, impondo ele mesmo tal obrigação.

Na noite de quarta-feira, o presidente Jair Bolsonaro afirmou, em entrevista à rádio Jovem Pan, que procurou Lewandowski e teria ouvido do ministro que não havia a intenção nem de determinar a obrigatoriedade da vacina, nem de autorizar os MPs a fiscalizar e perseguir pais. “A decisão de Lewandowski para os 27 MPs do Brasil foi para que eles observem o direito das crianças”, disse o presidente da República. O problema, neste caso, é que a afirmação não chega a ser tranquilizadora, pois há diversas concepções sobre o que exatamente constitui o “direito das crianças”. A interpretação de que pais podem até perder a guarda dos filhos caso não os vacinem contra a Covid já foi defendida por juízes e procuradores em entrevistas e publicações em mídias sociais. É o caso de Iberê de Castro Dias, da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos (SP), e de Mário Sarrubbo, procurador-geral de Justiça de São Paulo – e todos eles creem estar agindo em nome do “direito das crianças”. Por isso, é essencial que Lewandowski, criador da confusão, venha logo esclarecê-la o quanto antes, respondendo de forma precisa a várias questões sobre a obrigatoriedade da vacina e sobre os limites da ação de conselhos tutelares e membros do MP.

É direito dos pais buscar e receber toda informação possível e fazer questionamentos; perguntar não faz de ninguém um “antivacina”

Ao contrário do que muitos imaginam, há enorme espaço para se defender ao mesmo tempo a importância da vacinação e a liberdade individual – e, neste caso, a autonomia dos pais para decidir o que é melhor para seus filhos, cientes da necessidade de que suas escolhas atendam ao melhor interesse das crianças. As vacinas têm sido fundamentais para reduzir os indicadores da Covid – antes do surgimento da variante ômicron, até o número de novos casos vinha em queda livre; com a chegada da nova cepa e a explosão de surtos, a imunização, aliada à menor agressividade da ômicron, tem impedido que as internações e mortes subam no mesmo ritmo. E a cobertura vacinal brasileira, que se aproxima dos 70% de adultos com ao menos duas doses, foi obtida sem necessidade alguma de coerção. Se foi assim com os adultos, não surpreenderia se pais e mães tivessem a mesma atitude em relação aos filhos.

No entanto, como já afirmamos neste espaço, há pessoas relutantes cujas razões merecem consideração. “É compreensível, por exemplo, a apreensão em relação a possíveis efeitos colaterais, pois ainda se trata de imunizantes em fase experimental (…) Casos de possíveis reações graves podem e devem ser investigados – e conclusões apressadas, tanto culpando quanto isentando a vacina, em nada ajudam a estabelecer a verdade”, escrevemos em outubro de 2021. E quem tem tal apreensão sobre imunizar a si mesmo a terá ainda mais em relação aos próprios filhos. É direito dos pais buscar e receber toda informação possível e fazer questionamentos; perguntar não faz de ninguém um “antivacina”, e simplesmente suprimir o debate é a melhor forma de reforçar posições que poderiam até mesmo se mostrar infundadas caso a informação pudesse circular livremente. Quanto mais elementos os pais tiverem para decidir, mais sensatas serão suas decisões livres, tornando dispensáveis imposições desproporcionais e até mesmo inconstitucionais.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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