‘Grotesco, ‘cruel’, ‘estarrecedor’: como um texto antirracista virou alvo de canceladores

No último domingo (16), o antropólogo e poeta Antonio Risério quis propor um debate na Folha de S.Paulo: não estariam alguns ideólogos do movimento antirracista e a própria mídia indo longe demais em sua vista grossa a casos de hostilidade de negros contra brancos e, com isso, em vez de combater o racismo, ajudando a ensejar novos tipos de conflitos entre grupos raciais?

Risério menciona alguns exemplos de casos de racismo de negros contra brancos que ganharam pouca ou nenhuma cobertura da mídia, e questiona o que aconteceria se os papéis fossem invertidos. Após a publicação do texto, o antropólogo virou assunto do momento no Twitter, foi tema de diversas matérias em sites e jornais e se tornou alvo de canceladores.

“Risério merece o mesmo tratamento que os defensores da cloroquina”, disse o escritor Itamar Vieira Júnior ao jornal Estado de Minas. “Nunca houve no Brasil negros com poder oprimindo brancos. Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto na medida em que é cruel”, criticou o jurista Thiago Amparo, que também é colunista da Folha, em um tuíte com dezenas de milhares de curtidas.

“Vergonha, tristeza e indignação. Isso aqui, junto com a ‘ideologia de gênero’, é grotesco”, afirmou a psicanalista Vera Iaconelli via Twitter. “Considero estarrecedor que a nova munição pseudocientífica a favor do racismo circule em suas páginas”, afirmou a própria Vera em coluna na Folha, referindo-se ao jornal.

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O que diz o texto de Antonio Risério

No texto, Risério afirma que “quem quer que observe a cena racial do mundo vê que o racismo negro é um fato”, e que “casos desse racismo se sucedem, mas a ordem-unida ideológica manda fingir que nada aconteceu”.

Segundo o antropólogo, ao contrário do que reza o dogma identitário, os negros “já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo”. Além disso, afirma ele, a história ensina que “quem hoje figura na posição de oprimido pode ter sido opressor no passado e voltar a ser no futuro”.

Risério menciona alguns exemplos de racismo de negros contra brancos que foram relativizados pela mídia, como um caso de Washington citado pelo jornalista William McGowan no livro “Coloring the News” (2001), em que adolescentes negros gritavam no metrô: “Vamos matar todos os brancos!”. O evento foi descrito pelo jornal The Washington Post como um “confronto de duas culturas”.

O mesmo livro também recorda o caso de uma gangue de jovens negros no Michigan que estuprou uma adolescente branca e fuzilou um rapaz que a acompanhava.

“O New York Times não indigitou o caráter racial do crime e o relegou a uma materiazinha de um só dia. Se os papéis fossem invertidos, uma gangue de jovens brancos currando uma mocinha preta e assassinando um jovem negro, o assunto seria explorando amplamente —e em mais de uma reportagem. Lá, como aqui, o ‘double standard’ [duplo padrão] midiático é um fato”, diz Risério.

Grupos identitários querem instituir novo código moral antirracista sem dar espaço ao debate, diz especialista

Muitas das críticas direcionadas ao texto de Risério não entram no debate proposto pelo antropólogo, mas, pelo contrário, propõem que o simples fato de debater as ideias apresentadas por ele já seria escandaloso.

O especialista em liberdade de expressão Pedro Franco, mestre em História Social da Cultura pela PUC Rio e professor-pesquisador da Universidade de Nova York, diz que, ao manifestarem sua revolta moral, alguns grupos querem convencer as pessoas de que certas ideias são “tão absurdas, tão revoltantes, que não merecem nem resposta”. “Ou seja, é como se fosse óbvio, ou como se devesse ser óbvio, qual foi o ‘pecado mortal’. E, se você não vê o erro dele, você é tão racista quanto ele”, afirma.

A controvérsia sobre o texto de Risério, segundo ele, gira em torno de uma nova definição de racismo que se popularizou em certos círculos intelectuais nos últimos anos, que contradiz a definição mais tradicional de racismo. Embora tenham redefinido o conceito há só alguns anos, os grupos identitários pretendem que toda a sociedade acate essa definição sem dar chance de que ela seja debatida.

“Houve uma redefinição do que o termo racismo significa. É uma definição mais relacionada a estruturas sociais, a ‘sistemas de opressão’, por assim dizer, do que à noção do senso comum de que o racismo é simplesmente o preconceito com base na cor da pele, seja qual cor da pele for essa”, explica.

A partir desta nova definição, os movimentos antirracistas qualificam as ideias de Risério ou outras semelhantes como hipóteses absurdas, sufocando qualquer discussão ou questionamento.

“É uma expectativa moral inteiramente nova e, de uma hora para outra, eles esperam que as pessoas entendam essa mudança de definição – e não só entendam, mas se revoltem moralmente contra definições alternativas. É uma situação muito complicada, quase como uma mudança repentina do código moral da sociedade. E, de uma hora para outra, quem não acompanhou esse bonde não merece nem resposta. É uma condenação sumária sem possibilidade de apelo”, afirma Franco. “Estão esperando que a sociedade inteira embarque nessas mudanças, sem discussão.”

Para ele, há “muito pouco debate aberto e honesto, de boa-fé” sobre o novo código moral antirracismo e o que ele implica em termos de comportamento e atitudes das pessoas. “Não é a boa e velha atitude antirracista, antipreconceito, que vigorou durante uma parte do século 20 nas lutas dos direitos civis.”

Segundo Franco, dar atenção a Risério seria uma boa oportunidade de reflexão para os proponentes deste novo código moral, mas isso se tornou quase impossível. “É um antropólogo brilhante, um escritor maravilhoso, mas não tem papas na língua. Quando ele vê algo que acha que está errado, ele fala, escandaliza, e há uma virtude nisso. Os ensaios dele deveriam fazer a gente pensar, e não evocar essa reação moralista que este texto está evocando.”

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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