A Marinha informou que abrirá inquérito para apurar as causas do deslizamento de uma rocha no cânion de Furnas, em Capitólio, Minas Gerais. Acredito que seja mera formalidade, uma vez que qualquer pessoa com dois olhos de ver e meia dúzia de aulas de geografia no primário sabe que o deslizamento foi causado pela erosão natural desse tipo de rocha.
Inquérito pressupõe perguntas, investigações e a busca por eventuais responsáveis pela fatalidade que matou sete pessoas. Se disserem que já há no local técnicos sapientíssimos com PhD em arenitologia, não duvido. É capaz também que haja entre eles ao menos um papiloscopista distraído pulverizando o lugar todo, enquanto um sociólogo (que entrou para a equipe por meio de um sistema de cotas) cita este ou aquele autor para atestar: este é mais um crime para a ficha corrida das mudanças climáticas.
É bem possível que, num futuro próximo, venhamos a conhecer ainda o Almirante Paranhos, encarregado da investigação. Ele virá a público para dizer que o laudo técnico apurou que a lancha na qual estavam as vítimas ultrapassou em 0,7mm o limite estabelecido no sétimo parágrafo do segundo inciso do item z do artigo 124 de uma portaria obscura que regulava o turismo no local. “Se tivessem seguido as regras, nada disso teria acontecido”, dirá ele, prometendo mais fiscalização no local.
Se, se, se, se. Um zilhão de ses sedimentados ao longo de milhões de anos. Dos quais alguns resolvem, assim do nada, se desprender e cair sobre seres humanos que se maravilhavam com a combinação sempre fascinante entre água e rocha. Não há culpados, logicamente, porque logicamente na vida nem tudo é uma relação tão óbvia de causa e efeito. E, mais uma vez logicamente, nem toda tragédia é consequência da omissão ou, vá lá, da má intenção de outrem.
Mas vivemos num mundo que busca sofregamente explicações. Na melhor das hipóteses, essa busca se dá porque precisamos apaziguar um coração, digo, cérebro que não suporta o acaso. Que foge do Imponderável de Almeida. Na pior das hipóteses, essa busca é mais uma demonstração da pandemia de arrogância que caracteriza nosso tempo. Não à toa teve “jornalista” (mais aspas, muitas aspas, todas as aspas do mundo, por favor) enxergando no fato de uma das lanchas se chamar “Jesus” sinal de que, no final das contas, a fé de alguém “inferior, primitivo” é sempre culpada por alguma coisa.
Uma vez encontrados os culpados por infringirem a grande regra de jamais, em hipótese alguma, se expor à possibilidade, ainda que ínfima, de uma rocha desabar sobre a sua cabeça durante um tranquilo passeio de fim de semana, virão as macrointerpretações do ocorrido. Porque, veja bem, se o capitalismo não fosse selvagem aquelas pessoas não estariam ali. Porque, veja bem, a decadência da Civilização Ocidental criou toda uma geração que, sem pudor algum, exibe seu “luto” em trajes sumários. Porque, veja bem, o terraplanismo não sei o que aqui, o negacionismo não sei o que lá. Porque, veja bem, temos 99% de certeza de que uma tragédia igual se repetirá nos próximos 100 milhões de anos.
E, em seguida, invariavelmente serão anunciadas proibições. Não duvido que em breve os paredões do cânion estarão cobertos por avisos do tipo “PROIBIDO SE APROXIMAR, SUJEITO A FUZILAMENTO”. Fiscais serão contratados. Em atos espetaculosos, embarcações que infringirem a lei serão afundadas. Isso tudo enquanto o seu Zé, o dono da lancha que ousou batizar de “Jesus”, mofa na prisão – numa versão mais-do-que-pervertida de justiça.
Tudo isso há de ser feito rapidamente e sob a luz de refletores, com palavras declamadas para os sempre atentos microfones e comentadas à exaustão por acasologistas e imponderavelólogos de redes sociais. Assim distraídos, logo nos esqueceremos das vítimas da rocha assassina e exploraremos o próximo acidente capaz de gerar primeiro espanto, depois de revolta, indignação e desejo de vingança.
Num ciclo de distrações que só tem um objetivo: fazer com que ignoremos a triste verdade de que negamos nossa mortalidade e, não raro, desperdiçamos a vida numa infindável busca por “culpados” pelas rochas que insistem em cotidianamente desabar sobre nossas cabeças.
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