Do sindicalismo à linguagem neutra: o que mudou na esquerda em 30 anos

A foice e o martelo podem até funcionar como símbolos clássicos dos partidos de inspiração marxista no imaginário popular, mas há anos deixaram de representar fielmente a principal base de apoio da esquerda no Ocidente, inclusive no Brasil. O proletariado pobre proveniente das fábricas e do campo perdeu muito do protagonismo que já teve, por exemplo, nos planos de governo do Partido dos Trabalhadores, que se prepara para lançar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua quinta disputa ao Planalto, ocupando com folga a primeira colocação em todas as pesquisas de intenção de voto mais recentes.

Diferente de 1989, quando a liderança sindical de Lula o fez ganhar popularidade nacional junto às multidões de operários, com um discurso focado em direitos trabalhistas, o PT de hoje adere com vigor às pautas identitárias, distantes dos valores e cotidiano do brasileiro comum, mas preciosas para a elite rica do progressismo ocidental.

Essa transformação fica evidente quando se compara o plano apresentado pelo PT naquele pleito e o último documento com propostas de governo publicado pelo partido, lançado em 2020 e intitulado Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil.

No documento de 1989, ao longo do capítulo dedicado de modo mais direto a temas sociais, o termo “minorias” só aparece três vezes em 27 páginas e, mesmo assim, em todas as situações em que é usado refere-se de modo pejorativo àquilo que o partido chamava de minorias privilegiadas, ou seja, os mais ricos. Também não constam termos como “misoginia” e “sociedade patriarcal”, tão comuns no discurso da esquerda contemporânea.

Considerando todos os capítulos do documento, a palavra “operário” aparece 17 vezes e é notória a preocupação do texto em dedicar extenso espaço a temas que dizem respeito à rotina do trabalhador de baixa renda. O termo que já foi tão simbólico no vocabulário socialista, contudo, foi completamente esquecido no plano de 2020, não sendo usado nem uma única vez.

Agenda LGBT

Quanto aos direitos dos homossexuais, o plano de 89 não fez menção alguma. Pelo contrário, o documento seguia à risca o que hoje ativistas LGBT chamam de cis-heteronormatividade, referindo-se sempre de forma binária aos sexos, como no trecho em que menciona “plena cidadania cultural e política de homens e mulheres” ou quando se refere a preconceitos na educação, mencionando apenas “preconceito sexual e racial”. Naquele tempo, o uso ambíguo da palavra “gênero” ainda não havia caído no gosto da esquerda, fato comprovado pela ausência da palavra, inclusive no capítulo dedicado às mulheres. Esse capítulo, aliás, recebeu o sugestivo nome de “maioria oprimida”.

Em contraposição, o documento de 2020 não apenas dedica um capítulo inteiro à comunidade LGBT, mas também adere fielmente a todos os padrões terminológicos sugeridos por entidades ativistas desse meio. O PT atual fala, por exemplo, em criar um “Sistema Nacional de Enfrentamento a LGBTQI+fobia” e estabelece como meta o “reconhecimento das identidades de gênero e suas expressões” num capítulo intitulado “os novos alicerces do país necessário”.

No mês de julho desse ano, o partido avançou um pouco mais em sua adesão às pautas da ala mais radical da militância LGBT e entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para defender o uso da linguagem neutra, ou seja, a substituição de palavras da língua portuguesa que se refiram a masculino e feminino por termos inexistentes na norma culta, mas que, segundo seus defensores, seriam mais inclusivos, como “ile é amigue”, no lugar de “ele é amigo” ou “ela é amiga”.

Aborto e natalidade

A leitura do antigo documento também traz surpresas sobre outros temas para quem se acostumou com a esquerda dos últimos anos. Numa crítica ao “pensamento patronal”, o PT daquela época alertava, por exemplo, que crescia “assustadoramente o número de denúncias sobre perseguições no trabalho e exigência de controle da fertilidade”. Curiosamente, a valorização de grávidas no mercado profissional, hoje, tornou-se pauta publicamente muito mais defendida por conservadores do que por progressistas no debate político.

Até mesmo na questão do aborto o PT do passado parece mais moderado. Embora termos como “saúde reprodutiva da mulher” e “interrupção da gravidez” já fossem usados, em nenhum trecho do documento de 89 o presidenciável Lula se compromete com a legalização da prática. Na maior parte das vezes em que o aborto é mencionado, traz consigo o acréscimo “nos casos previstos em lei”.

Com o passar dos anos, no entanto, o PT não apenas passou a defender oficialmente a total descriminalização no aborto, como sua base parlamentar, durante os dois mandatos de Lula, atuou ativamente para alcançar esse objetivo no Congresso Nacional. Os filiados insatisfeitos com a nova determinação passaram a ser convidados a se retirar do partido ou foram expulsos.

Eleitorado de esquerda mudou no mundo todo

Em maio desse ano, um estudo mundial envolvendo 21 países ocidentais, que teve como um dos autores o economista Thomas Piketty, constatou o que a simples observação já permitia supor: o eleitorado de esquerda mudou muito nas últimas décadas. Tomando por base de análise o período que vai de 1948 até 2020, os pesquisadores notaram que, durante boa parte do século XX, o eleitor de partidos socialistas, trabalhistas e social-democratas era de baixa renda e baixa escolaridade, mas isso mudou com a chegada do século XXI, quando o ideário da esquerda passou a atrair os mais ricos e diplomados, especialmente aqueles relacionados ao mundo universitário, afastando-se parcialmente das demandas mais populares.

Uma das conclusões às quais o estudo chega é a de que nas últimas décadas a classe trabalhadora industrial foi consideravelmente reduzida em países desenvolvidos, perdendo relevância eleitoral. Em seu lugar surgiu uma nova classe média, bastante distribuída em diversas áreas econômicas, mas com destaque ao setor de serviços. Analistas da pesquisa apontam que, nesse grupo, a esquerda faz sucesso somente entre minorias étnicas, o que explica em parte a aposta atual no progressismo identitário.

Nos Estados Unidos, esse fenômeno de segmentação das pautas de esquerda ganhou especial atenção da academia em 2016, após a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais. Naquela época, o cientista político e professor da Universidade de Columbia, Mark Lilla, publicou um artigo no The New York Times que ficou conhecido por se tornar o mais lido do jornal naquele ano e, posteriormente, se transformou no livro The Once and Future Liberal: After Identity Politics (‘O progressista de ontem e o do amanhã: Desafios da democracia liberal no mundo pós políticas identitárias’, lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras).

Em seu texto, Lilla aponta que ao customizar demais a mensagem para minorias, os democratas teriam perdido a capacidade de formular uma visão de país que atraísse toda a população, concluindo que o apego às pautas identitárias influenciaram na derrota de Hillary Clinton. “Nos últimos anos, a esquerda americana caiu numa espécie de pânico moral sobre a identidade racial, de gênero e sexual que distorceu a mensagem e a impediu de se tornar uma força unificadora capaz de governar”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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