Usando uma expressão popular brasileira, quando se trata das relações entre Rússia e Ucrânia, “o buraco é mais embaixo”. Hoje, dia sete de dezembro, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, vão conversar sobre a Ucrânia por videoconferência. A abordagem de temas do espaço pós-soviético é uma constante aqui no nosso espaço e, buscando ir além do sensacionalismo, é interessante vermos quais os interesses em jogo e quais os riscos de um conflito na região.
O contexto da reunião é a escalada de tensões nas fronteiras do leste europeu. Note-se o plural, já que estamos falando das fronteiras entre Rússia e Ucrânia, entre Ucrânia e Belarus e as entre Belarus com Polônia e a Lituânia. Nas fronteiras bielorrussas ocorre uma crise de refugiados, utilizados como “bucha de canhão” pela ditadura Lukashenko contra os vizinhos que, por sua vez, responderam com uma maior militarização de suas fronteiras, com tropas e barreiras físicas.
Já nas fronteiras ucranianas ocorre uma concentração de tropas russas, incluindo em território de Belarus. Segundo o governo dos EUA, a Rússia estaria pronta para uma ofensiva de larga escala contra a Ucrânia no mês que vem. Na semana passada, o secretário de Estado de Biden, Antony Blinken, e o ministro de Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, se encontraram e discutiram as “linhas vermelhas” e o “espectro da guerra” que seria rejeitado por todos.
Pensando na pior hipótese, a de uma guerra em larga escala, o medo ucraniano é de estar literalmente cercada, podendo sofrer um ataque coordenado por todos os lados, e isso não é uma hipérbole. Forças russas estão na Crimeia, ao sul, no território da Transnístria, em Moldova, ao oeste, nos territórios do Donbass, a bacia do rio Don, ao leste, além da fronteira entre Rússia e Ucrânia, e ao norte, na mesma fronteira e também na fronteira com Belarus. Ou seja, seria difícil prever onde estaria o volume de uma ofensiva russa.
Origens de uma guerra
A vida real, entretanto, não é videogame. Começar uma guerra não é tão simples e é um processo que, historicamente, segue alguns cálculos. Por mais óbvio que seja, é importante frisar que ninguém começa um conflito armado achando que será derrotado, mas a certeza de vitória não é suficiente. Também é preciso existir a crença de que os ganhos vão superar, e muito, as perdas. Essa é a primeira pergunta. A segunda questão é a origem do conflito, se é por um cálculo de interesse externo ou por pressão interna.
O primeiro caso é típico da geopolítica. Anexar uma região rica em um recurso, por exemplo. O segundo caso é quando questões ideológicas de uma sociedade ou crises políticas internas fazem com que um conflito armado atenda aos interesses da ideia dominante ou do governo do momento. O revanchismo entre franceses e germânicos é um exemplo do primeiro tipo, enquanto a guerra das Malvinas, iniciada pela ditadura argentina em seu estertor, é um exemplo do segundo tipo.
Finalmente, é necessário calcular o quanto essa vitória é sustentável ou, ao menos, até onde o país pode, ou está disposto a, ir para obter e manter essa vitória. Isso inclui os riscos do conflito escalar e atrair a atenção ou a interferência de outras potências. Na Guerra da Crimeia de 1856, por exemplo, franceses e britânicos não se arriscaram a atacar o território russo fora da Crimeia, sob risco de atrair uma indesejada intervenção prussiana ou austríaca, criando uma guerra europeia.
Interesses
Feito esse “algoritmo de uma guerra”, que é um breve resumo da literatura sobre o tema, deve-se pensar na posição russa para avaliar as acusações pelos EUA e responder sobre os interesses russos. A Rússia poderia vencer a Ucrânia em um conflito militar? Sim, e possivelmente rapidamente, num cálculo simples. Que não é exatamente o caso, já que a afirmação de Washington é que a Rússia faria uma ofensiva em janeiro. Ou seja, no inverno, algo improvável, do ponto de vista militar, mas não impossível, veremos adiante.
Existe algum interesse externo russo na Ucrânia? Sim, especialmente três. Primeiro, garantir a segurança e os interesses da população etnicamente russa, concentrada no leste do país, segundo a Doutrina Karaganov, já mencionada aqui no nosso espaço. Segundo, impedir que a Ucrânia sedie bases estrangeiras ou se torne integrante da Otan. Terceiro, garantir o suprimento de água potável e de energia, especialmente para a Crimeia ocupada, cuja rede de abastecimento depende do restante do território ucraniano.
Por outro lado, existe amplo apoio ou pressão na sociedade russa para uma guerra com a Ucrânia? Não. Existe sim apoio à política externa de Putin e aos sucessos militares das últimas duas décadas, mas o risco de uma guerra arrastada contra uma população com laços históricos e culturais tão próximos da Rússia não é desejado. Importante sair da caricatura de um “governo malvado” de um filme de James Bond. O governo Putin age de acordo com seus interesses, que são calculados, e Lavrov é um diplomata robusto.
Uma vitória russa na Ucrânia seria sustentável? Depende. São muitas variáveis, o que é meio caminho andado para que a resposta seja um “não”. Potências como EUA e Reino Unido não teriam arcabouço legal para uma intervenção direta, não existe uma aliança formal com a Ucrânia. E os ucranianos sabem que teriam que lutar sozinhos nesse conflito. Na perspectiva ucraniana, o país tem parte de seu território ocupado por uma potência estrangeira e enfrenta grupos separatistas que classifica como terroristas.
Vitória sustentável?
Retornando aos interesses russos, pressões financeiras e o isolamento político seriam enormes, com o risco de terminar de romper com a ordem internacional vigente. O cenário de crise e de incertezas consequente não é desejado por ninguém. Geórgia, Finlândia e Suécia preencheriam a “ficha de inscrição” na Otan no dia seguinte de uma invasão russa. Principalmente, a Ucrânia é o maior país localizado totalmente na Europa. Não é como ocupar a Ossétia do Sul, com seus quatro mil quilômetros quadrados.
Invadir, derrotar e ocupar a Ucrânia não é tarefa fácil na vida real, mesmo com uma parcela da população que se identifica como russa. Por todos os elementos citados na coluna, mais alguns outros, como o fato dessas movimentações não serem inéditas, é interessante ter certo ceticismo sobre um ataque russo de larga escala contra a Ucrânia. Inclusive, os ucranianos estavam muito menos preparados para uma guerra em 2015 do que hoje, quando a guerra seria um “último recurso”.
Existe apenas uma hipótese para o conflito armado, do ponto de vista russo. Causar uma derrota relâmpago aos ucranianos que force Kiev (ou Kyiv, na grafia ucraniana) a assinar um tratado de paz que reconheça os interesses russos já citados. Inclusive, outra importante lembrança é que, para os russos, a Ucrânia já teria algumas dessas obrigações, segundo os Protocolos de Minsk. Para Moscou, o governo ucraniano as desobedece. Principalmente, o direito de reconhecer a autonomia das regiões com maioria russa.
Por outro lado, tudo isso que foi mencionado como interesse russo pode ser obtido pela negociação e pela diplomacia. Cabe estabelecer uma plataforma de contato direto entre os governos russo e ucraniano, com a mediação de outros atores. Era justamente esse o propósito dos Protocolos de Minsk, que, até agora, foram um fracasso. Flexionar os músculos na fronteira pode ser apenas um blefe, uma maneira da Rússia “lembrar” dessa necessidade e de que não vai aceitar o que chama de “cruzar linhas vermelhas”.
Putin, inclusive, não está no “front”. Ele está na Índia, um importante parceiro e comprador de armas, uma visita que veremos na próxima coluna. A Turquia se ofereceu recentemente como mediadora entre russos e ucranianos. Pesa em favor o fato de que a Turquia possui laços históricos com a Crimeia, laços econômicos com ambos os países e compartilha o Mar Negro, águas estratégicas para todos os envolvidos. Recentes exercícios militares da Otan no Negro, inclusive, irritaram e motivaram protestos por Moscou.
Codependência econômica
Ainda deixando o discurso histérico e belicista de lado, que agrada diferentes ideólogos, precisa-se olhar para outras duas questões. A primeira é a econômica. Comércio gera cooperação e, também, codependência. Uma guerra atrapalha, e poderia até encerrar, as exportações de gás e de petróleo pela Rússia para a União Europeia. Isso geraria uma profunda crise na economia russa. Por outro lado, para a Europa poder compensar esse fornecimento russo de hidrocarbonetos, os custos econômicos seriam altos.
O gás russo, pela proximidade geográfica e pela infraestrutura de gasodutos existentes, é muito mais barato do que, por exemplo, importar gás dos EUA por navio. Os europeus não podem prescindir do gás russo no curto prazo, muito menos no inverno. Entra aqui a pequena janela que daria uma racionalização para uma ofensiva russa em pleno inverno. Ainda assim, se os custos militares podem ser aceitáveis, os custos econômicos para a Rússia tornam questionável se uma vitória na Ucrânia seria sustentável no longo prazo.
Finalmente, existe uma questão que merece ser abordada em textos próprios e que não é simples: os laços históricos e culturais entre os países da região. Rússia, Ucrânia e Belarus compartilham uma profunda História comum. Resumir esses laços ao período soviético é superficial, é pueril. São séculos interligados, desde o início da cristianização da região, ao final do primeiro milênio depois de Cristo. Por cerca de quatrocentos anos, os três atuais países fizeram parte do mesmo Estado, o Império Russo.
Os três idiomas são inteligíveis entre si, a fé ortodoxa e o patriarcado de Moscou é historicamente um patrimônio comum, e Kiev é uma cidade com papel na unificação russa tão importante quanto Novgorod ou Moscou. Note-se o termo que é utilizado: uma história interligada, com influências mútuas. Em um contexto da formação de Estados nacionais novos, após a dissolução soviética, pautas nacionalistas chauvinistas e o revisionismo histórico vão apelar para diversos grupos, dos diferentes lados envolvidos.
Formação das almas
Existem desde ideólogos que vão afirmar que os três povos são o mesmo, até os que vão criar clivagens radicais entre eles. Estamos vivenciando um processo de criação de nacionalismos, similar ao que ocorreu no século XIX, que vão revisar ou tentar reformular os profundos laços linguísticos e culturais da região. Esse processo influencia desde grupos neonazistas, que vão advogar pelo conflito, por uma violência revanchista e um irredentismo territorial, até grupos considerados pacifistas.
Esse fenômeno, repete-se, ocorre nos três países, em maior ou menor escala. Na Ucrânia, por exemplo, existe desde o revisionismo que busca consagrar heróis que se ombrearam com os nazistas, lutando supostamente por uma Ucrânia independente em 1941, até os que defendem uma Ucrânia federal, com representatividade e autonomia para as comunidades russas e de outras minorias. No fundo, o que ocorre nesses novos Estados nacionais é um processo de “formação das almas”.
Esse é o título do livro do professor José Murilo de Carvalho sobre a formação do nacionalismo e da identidade republicana no Brasil no final do século XIX e início do século XX. As tensões no leste europeu e no espaço pós-soviético não são apenas por recursos ou por localizações estratégicas, como a Crimeia, mas também disputam as almas dessas nações e dessas comunidades. Novamente, isso é um brevíssimo resumo de um complexo processo que está ocorrendo perante nossos olhos.
O ponto de lembrar essa profunda história comum é que não se trata de, por exemplo, algo como os EUA invadirem o Afeganistão, em que é fácil definir objetivos e quem pode ser o inimigo. Uma guerra na Ucrânia não é impossível, mas também não é tão simples assim, seja do ponto de vista militar, econômico ou cultural. Infelizmente, também parece não ser tão simples uma solução negociada e diplomática dos problemas citados, mantendo congelado um potencial conflito que pode escalar a qualquer momento.
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