As diferenças econômicas e tecnológicas que estão afastando os Estados Unidos e seus aliados europeus da China e da Rússia criaram uma divisão geopolítica e militar profunda. Ela já vem sendo chamada de “Guerra Fria 2.0” – embora essa classificação divida analistas pela falta de um componente ideológico. Porém, assim como ocorreu no século 20, a nova disputa vem acompanhada de uma intensa corrida armamentista.
Mas quais armas podem mudar o equilíbrio de poder no planeta?
O desenvolvimento na China e na Rússia de mísseis hipersônicos, capazes de inutilizar os sistemas conhecidos de defesa, e um acordo pelo qual os Estados Unidos compartilham sua tecnologia de submarino nuclear com a Austrália são os principais pontos.
Eles evidenciam que as nações retomaram a competição armamentista, segundo o analista de defesa independente Paulo Filho, que é coronel da reserva do Exército brasileiro. “Nós hoje vivemos em um mundo completamente diferente de dez anos atrás”, afirma.VEJA TAMBÉM:
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Além dos mísseis e submarinos, outras armas merecem atenção. Elas são drones que atacam aos milhares usando a tecnologia de “enxame”, inteligência artificial, comunicação quântica, ataques cibernéticos e especialmente a guerra espacial.
Uma das vertentes que mais inquieta lideranças mundiais, militares e também a opinião pública é a nova tecnologia de mísseis hipersônicos – por estar diretamente relacionada à possibilidade de uso das armas nucleares.
Primeiro, é preciso contextualizar: a tendência mundial pós-Guerra Fria de desarmamento nuclear não só foi interrompida, como muitas nações como Reino Unido, Rússia, Índia, China e Coreia do Norte estão aprimorando suas armas nucleares.
Porém, o número estimado de bombas nucleares em estoque no mundo é 80% menor em relação a 1986. Hoje estima-se que existam cerca de 13 mil ogivas nucleares no planeta.
Essas bombas podem ser lançadas de por meio de mísseis balísticos (chamados pela sigla em inglês ICBM). Eles chegam a altitudes suborbitais e depois reentram na atmosfera em uma trajetória em forma de arco, até atingir seus alvos a milhares de quilômetros de distância. Porém, uma vez disparados, sua rota se torna relativamente previsível e exposta a sistemas de detecção – tornando possível que sejam abatidos.
Já os novos mísseis hipersônicos, apesar de viajar a velocidades mais baixas que os mísseis balísticos ICBM, podem ser manobrados em voo para evitar defesas antiaéreas. Além disso, eles têm a capacidade de voar a baixas altitudes, para evitar por mais tempo radares e sistemas de detecção.
Há dois tipos de armas hipersônicas: mísseis de cruzeiro e veículos planadores orbitais. Os que têm obtido mais atenção internacional têm sido os planadores: eles são levados por foguetes ou mísseis até órbitas baixas e podem circundar o planeta carregados de bombas. Depois, descem “planando” em velocidades até cinco vezes mais rápidas que o som – até se chocar com um alvo em qualquer parte do globo.
Não está claro ainda até que ponto essas armas conseguem manobrar durante o voo para evitar defesas antiaéreas e radares, mas é certo que podem carregar armas nucleares.
O grande desafio no desenvolvimento desse tipo de armamento é criar materiais que resistam às altas velocidades, que chegam até a modificar as moléculas de ar que circundam o míssil.
Em agosto, o jornal Financial Times revelou que a China teria testado um desses planadores, que orbitou o planeta e depois chegou perto de atingir um alvo em um campo de testes na China.
A revelação começou a ser chamada de momento Sputnik – em referência ao primeiro satélite a orbitar a Terra em 1957, que gerou temores de que os EUA estariam ficando para trás na corrida tecnológica em relação à União Soviética.
A China negou tudo. Disse que estava testando um veículo espacial e não um míssil hipersônico. Porém, em 2019 já havia testado um tipo de míssil hipersônico menos potente.
A Rússia afirma que já possui um planador hipersônico chamado Avangard. Ele estaria em serviço desde 2019. A arma é lançada a partir de um míssil intercontinental convencional.
O país também afirmou em 2018 ter testado com sucesso um míssil hipersônico chamado Kinzhal, que é lançado de um avião de caça e também pode levar uma arma nuclear.
Em outubro deste ano, Moscou realizou ainda o lançamento do míssil de cruzeiro hipersônico Tsirkon, de um submarino. Um dos alvos preferenciais dessa arma são navios de guerra de superfície, que praticamente não têm como se defender usando a tecnologia atual.
Depois que os testes chineses e russos vieram a público, os EUA intensificaram o investimento nesse tipo de arma. Veículos hipersônicos que poderiam carregar armas convencionais já foram testados pelos EUA, mas houve falhas. O Pentágono pretende testar um novo sistema completo de armas hipersônicas em 2022.
Ataque de drones “enxame” pode comprometer frotas
Analistas militares concordam que um dos mais prováveis cenários de uma guerra convencional envolvendo nações é a região marítima ao sul da China. Pequim vem escalando o discurso de ameaças sobre retomar o território autônomo de Taiwan e reivindica soberania na região após construir uma série de ilhas artificiais.
Taiwan possui aviação e mísseis avançados para se proteger. E recentemente os Estados Unidos afirmaram ter condições de defender a ilha de uma eventual invasão chinesa. Por causa disso, firmaram um acordo com a Austrália para fornecer ao aliado submarinos nucleares.
A Austrália será o primeiro país a ter submarinos movidos a propulsão nuclear sem ter armas nucleares. Isso é importante porque quanto maior a presença de submarinos nucleares ocidentais na região, a complexidade e os custos de travar uma guerra no mar se tornarão um fator de dissuasão para a China.
Mas, se o conflito de fato acontecer, deve ser bem diferente da última guerra naval em 1982, ocorrida nas Ilhas Falkland/Malvinas. Nas últimas semanas, imagens de satélite mostraram réplicas em tamanho real de navios de guerra americanos em uma área de testes de mísseis “matadores de porta-aviões” em um deserto na China. E os mísseis não seriam a única novidade em um eventual conflito.
Os EUA lideraram por anos a tecnologia dos drones usados para atacar extremistas na Guerra ao Terror no Iraque, Afeganistão e Síria. Mas a utilidade dessas aeronaves – Reapers, Predators e Global Hawks, que são praticamente do tamanho de aviões de caça – é contestada em uma guerra convencional, por supostamente não possuírem sistemas de defesa suficientes.
A China, por sua vez, vem desenvolvendo a tecnologia de drones chamada “enxame”. Talvez o leitor já tenha visto imagens de TV onde dezenas de pequenos drones iluminados, coordenados por inteligência artificial, formam figuras no céu.
Agora imagine que fossem centenas ou milhares de drones cheios de explosivos, se chocando coordenadamente contra um navio militar. Talvez a maior parte deles seja abatida pelas defesas da embarcação, que usam canhões e mísseis também guiados por inteligência artificial. Mas alguns drones provavelmente sobreviveriam para atacar sistemas essenciais da embarcação, como radares ou sistemas de armas.
Estratégias similares também vêm sendo testadas pela Rússia no Mar Negro.
Em outra frente, a China afirma investir em drones submarinos supostamente capazes de dinamitar e inutilizar portos inteiros.
Ainda não se sabe se haverá combates entre drones no futuro. Israel é o único país que até agora vem desenvolvendo defesas eficazes contra ataques simultâneos de drones, que podem ser do tamanho de uma bola de futebol ou de um avião. As soluções vão desde interceptação por mísseis a ataques eletromagnéticos.
Guerra espacial: destruição de satélites pode ter consequências na exploração do espaço
Outra das tecnologias disruptivas não é propriamente uma novidade: ambicionada desde a Guerra Fria, a capacidade de destruir satélites voltou aos holofotes. Isso devido ao papel que eles desempenham na guerra moderna, guiando mísseis, drones, possibilitando comunicações e monitorando forças inimigas no campo de batalha. São responsáveis ainda pela tecnologia de orientação GPS, também usada no campo civil.
Os EUA já haviam testado a tecnologia de abater satélites em 1985. Em 2018, a Rússia teria desenvolvido um míssil antissatélite que poderia ser lançado de um caça MIG-31. Em um teste no ano seguinte, a Índia lançou uma míssil e conseguiu abater um de seus próprios satélites em órbita da Terra.
No último fim de semana, a Rússia destruiu um antigo satélite espião – episódio que atraiu críticas internacionais por supostamente colocar em risco a tripulação da Estação Espacial Internacional.
A tecnologia é altamente controversa, pois a destruição de satélites pode gerar quantidades massivas de destroços que, viajando em velocidades altíssimas na órbita do planeta, podem se chocar e destruir acidentalmente outros satélites ou veículos espaciais – gerando um efeito cascata que pode eventualmente ameaçar ou até impossibilitar o uso de satélites ou missões espaciais futuras.
A reação americana foi criar em 2019 sua “Força Espacial” para, em paralelo ao trabalho da NASA, lidar com essa e outras questões militares envolvendo a exploração espacial.
Outras frentes de pesquisa armamentista são as aplicações da computação quântica nas comunicações militares (para proteger ou decifrar mensagens), o uso da inteligência artificial no campo de batalha e a guerra cibernética, travada nos domínios das redes de computadores.
O desenvolvimento dessas tecnologias é liderado de forma majoritária pelas maiores potências militares: EUA, China e Rússia. A corrida é puxada pelo fato de que o avanço de uma nação em determinada área é visto como ameaça pelas outras.
Com os maiores gastos militares no planeta, cerca de 778 bilhões de dólares em 2020, os EUA permanecem como o modelo a ser seguido. A China, que gastou 252 bilhões de dólares em 2020, segundo dados do Sipri, o Instituto de Pesquisa da Paz de Estocolmo, afirma querer assumir a liderança militar global em 2049. A Rússia teve gastos militares da ordem de 61 bilhões de dólares no período.
Mas a corrida armamentista não é homogênea. O desenvolvimento de armas totalmente novas é incentivado pelo medo de ser superado pelos rivais. Mas por outro lado, esbarra em barreiras políticas, éticas, burocráticas e na própria necessidade de manutenção e melhoria das forças existentes – fatores que retardam o processo.
O Sipri estima que 80% da verba de pesquisa e desenvolvimento militar nas potências mundiais vá para melhoria de armas e equipamentos já em operação – e não para tecnologias disruptivas.
Como fica o Brasil nesse cenário?
O país não se insere diretamente nesse jogo de forças globais. Em linhas muito genéricas, a ideia é investir em tecnologia e treinamento para dissuadir. Ou seja, adquirir armas e equipamentos que tornem uma ação militar contra o Brasil pouco vantajosa ou até impeditiva em termos econômicos. A era em que a força de um exército era medida praticamente apenas pelo número de combatentes em suas fileiras acabou. Mas isso será tema das próximas colunas.
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