CONFESSOU QUE USURPOU O PODER E FICOU POR ISSO MESMO
Publicado em 18 de novembro de 2021
Paulo Polzonoff Jr.
A declaração absurda e inaceitável de Dias Toffoli é dita para um país anestesiado e cansado de tanta indignação inócua
Comecei a ler a biografia de Lula escrita por Fernando Morais. E, na primeira linha, já fiquei indignado. Não foi a primeira vez no dia. Aliás, ando com a impressão de que minha rotina de acompanhar a política brasileira se transformou numa sucessão de affs. Fulano disse isso, aff. Cicrano disse aquilo, aff. Olha essa decisão do STF aqui: aff. Viu que professores estão defendendo o uso da linguagem neutra? Aff. Aff. Aff. Mil vezes aff.
Meu problema com aquilo que chamo de “epidemia de indignação” é justamente este: uma sociedade viciada em ficar indignada por coisas à toa é incapaz de se indignar quando se vê diante de algo realmente digno de indignação (sic). Foi assim, anestesiados por indignações mil, que os brasileiros ouviram de um ministro da Suprema Corte a confissão de que essa mesma corte usurpou o poder presidencial e se aproveitou da pandemia para exercer funções que não estão previstas pela Constituição.
“Nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”, disse o ministro Dias Toffoli, um dos 11 (no momento, 10) que atualmente, e de forma ilegítima, sem um mísero votinho, seguram as rédeas do Leviatã no país. A ideia não é exatamente estranha aos brasileiros. Há muito expressões como “ditadura da toga” estão na boca do povo. O que chama a atenção é a cara-de-pau com que um ministro do STF confessa ter usurpado o poder no Brasil. E fica por isso mesmo.
Ao saber da fala do ministro, ainda na ontem de terça (16), fiquei esperando pelas manifestações das instituições. Aquelas que, acreditam os incautos, estão funcionando muito bem, obrigado. Dos pares de Toffoli no STF, inclusive do ministro Luiz Fux, que ainda em agosto defendeu um Supremo sem atuação política, nem um pio. Do Congresso, que tem seu poder usurpado o tempo todo pelo ativismo dos ministros, nadica de nada. Das instituições civis historicamente comprometidas com a defesa do já mítico Estado Democrático de Direito, um silêncio vergonhoso. E por aí vai.
Parvoíce
O presidente, ou melhor, semipresidente Jair Bolsonaro, em meio a uma viagem ao Oriente Médio, tampouco se manifestou a respeito da fala gravíssima de Toffoli. E, tudo bem, a gente até entende que, sob os coqueirais artificiais em ilhas idem, é difícil se indignar com o que também pode ser interpretado como um lapso supremo (não é). Mas como ignorar que, logo depois da confissão absurda e inaceitável, o ministro Toffoli ainda teve a ousadia de dizer que “presidir o Brasil não é fácil” – claramente fazendo referência à atuação dele, Toffoli, e do STF?!
Ninguém faz nada. Ninguém fará nada. Porque a indignação, quando há, é apenas estética. Um grande jogo de cena em que atores voluntários fazem o papel de heróis diante da tela do computador. E tome hashtag. E tome “não é possível”. E tome pontos de exclamação!!!!! Nessa cadeia alimentar crudelíssima e nada civilizada, os peixes pequenos, para variar, se alimentam os detritos que se acumulam no fundo desse aquário, enquanto os peixões graúdos, embasbacados com o próprio reflexo no vidro, devoram de bom grado a ração fresquinha que o Estado lhes dá.
Há exceções, claro, mas sabemos o que acontece aos peixes pequenos que se revoltam com sua danação de ter de se sacrificar a fim de garantir a vida boa alheia: eles acabam jogados na privada. Assim, sem mais nem menos, sem dó nem piedade. Sem nem mesmo uma tipificaçãozinha no Código Penal para chamar de sua.
Passamos anos nos indignando com escândalos de corrupção. Todas as manhãs era aquela coisa de ver os policiais federais na rua e correr para o Google pesquisar o que significava o nome da operação policial. Depois, mais anos de indignação com a hipocrisia da esquerda em pautas morais. Quanta gente não arrancou os cabelos porque Marcia Tiburi ou Felipe Neto falaram alguma bobagem! Para piorar, os últimos dois anos foram marcados por uma pandemia que criou várias oportunidades de indignação seletiva – e principalmente inócua.
Todo esse caldo borbulhante culminou com a Grande Indignação do dia 7 de setembro de 2020, quando milhões de pessoas foram às ruas para dizerem: estamos indignadas. Para quê? Mal sabiam os manifestantes que o poder já tinha sido usurpado e estava sendo exercido por um STF que, além de despótico, é pouquíssimo esclarecido. Destronado, o presidente aqui e ali ainda acena aos seus apoiadores como se tivesse força para reverter essa situação. Não tem. E sabe o que é pior? Ele sabe disso.
Para mim, a única dúvida que resta é se daremos prosseguimento a essa dissimulação. Até quando o pacto de cinismo vigorará? Há quem creia que uma derrota de Bolsonaro em 2022 significaria a volta à normalidade. Que o STF abdicará voluntariamente do poder usurpado. Que a Constituição voltará a ser respeitada. E outras histórias do tipo. Já eu estou começando a desconfiar de que a parvoíce de Bolsonaro é parte essencial dessa engrenagem.
Confira a matéria no Jornal da Besta Fubana
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