Alexandre de Moraes e o Judiciário “editor” nas eleições

No mesmo julgamento em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) absolveu, por unanimidade, a chapa formada por Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão em ações impetradas pelo PT, um dos membros da corte, o ministro Alexandre de Moraes, deu mais uma demonstração que os tribunais superiores seguem bastante dispostos a agir como “editores da sociedade”, na infeliz expressão do ex-presidente do STF Dias Toffoli. Moraes, que também é membro do Supremo e se tornará presidente do TSE um mês antes das eleições de 2022, prometeu cassar e prender quem “repetir o que foi feito em 2018”, em alusão a um suposto crime cujas provas, ou ao menos a sua gravidade, nenhum ministro reconheceu no julgamento de quinta-feira, 28 de outubro.

“Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado. E as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as eleições e a democracia no Brasil (…) A Justiça é cega, mas não pode ser tola. Não podemos criar o precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, o mecanismo usado nas eleições e depois (…) Nós podemos absolver aqui, por falta de provas, mas sabemos o que ocorreu. Sabemos o que vem ocorrendo e não vamos permitir que isso ocorra. Não podemos criar um precedente, olha tudo que foi feito vamos passar o pano. Porque essas milícias digitais continuam se preparando para disseminar o ódio, para disseminar conspiração, medo, para influenciar eleições, para destruir a democracia (…) Houve disparo em massa. Houve financiamento não declarado para esses disparos. O lapso temporal pode ser impeditivo de uma condenação, mas não é impeditivo da absorção, pela Justiça Eleitoral, do modus operandi que foi realizado, e que vai ser combatido nas eleições 2022”, afirmou o ministro, de quem se pode dizer, com toda a tranquilidade, que é, hoje, um dos agentes políticos cujas ações mais têm colaborado para erodir as liberdades democráticas no Brasil, graças à sua condução dos abusivos inquéritos das fake news, dos atos antidemocráticos e das “milícias digitais”.

O Judiciário parece disposto a se tornar o que não pode ser: árbitro da veracidade de afirmações, do que é ou não fake, do que é “ódio” ou “medo”

Ora, se não há provas, não há como um magistrado afirmar de forma tão enfática que “sabemos o que ocorreu”. Se há as provas, mas elas não foram consideradas graves o suficiente para cassar uma chapa, como é possível prometer que, no ano que vem, o mesmo procedimento resultará em cassação e até prisão? O que será considerado “disseminar ódio”, “conspiração” ou “medo”? Espalhar acusações contra candidatos pelo WhatsApp renderá prisão? Que tipo de acusações? A esquerda poderá chamar Jair Bolsonaro de “genocida” mesmo se tal acusação, formalmente, jamais prosperar em um tribunal brasileiro ou estrangeiro? Os usuários do WhatsApp poderão se empenhar ao máximo para lembrar todas as provas (ainda que agora inúteis em um tribunal, graças aos contorcionismos jurídicos do Supremo) dos crimes da “alma mais honesta da nação” e dos esquemas de seu partido para fraudar a democracia brasileira?

O problema, aqui, não está em “passar pano” para atos que sejam efetivamente fraudulentos, como um gasto de campanha não declarado com o objetivo de aumentar o alcance de publicações em mídias sociais ou aplicativos de mensagens. É para isso que servem os órgãos de fiscalização e investigação, bem como a Justiça Eleitoral. Também não se trata de aceitar pacificamente que as campanhas eleitorais sejam conduzidas de maneira sórdida – um hábito que, no Brasil, vem de muito antes da existência das mídias sociais e não dispensa o uso de marqueteiros pagos a peso de ouro devidamente declarado nas prestações de contas, como foi o caso de João Santana, que comandou a campanha de Dilma Rousseff em 2014. Naquela ocasião, a candidata Marina Silva foi vítima de todo tipo de perfídia midiática – ficou célebre a peça publicitária que associava a defesa da autonomia do Banco Central ao sumiço de comida na mesa de uma família pobre.VEJA TAMBÉM:

O verdadeiro problema, e que está implícito na fala de Alexandre de Moraes, é que o Judiciário parece disposto a se tornar o que não pode ser: árbitro do que é manifestação de opinião ou do que é fake news – às vezes classificando como tais mesmo o que não é uma afirmação factual –, do que é “ódio” ou “medo”, criminalizando muito do que não se encaixaria nas definições de calúnia, injúria, difamação ou afirmações factuais falsas, e passando a punir discursos, opiniões, análises e críticas feitas por candidatos e cabos eleitorais pelo que acha merecedor de punição, não pelo que realmente é punível por lei. Em um país onde já se instaurou, na prática, a existência de “crime de opinião”, no qual a perseguição ocorre sob os aplausos de parte expressiva da sociedade e de formadores de opinião, e em que a repressão se dá apenas contra um lado do espectro político-partidário-ideológico, a carta branca para a Justiça Eleitoral agir como promete Alexandre de Moraes será uma ameaça à democracia muito maior que aquela que o ministro diz querer combater.

A necessária exposição de características, opiniões e feitos que tornam um candidato indigno do voto popular, bem como a crítica ou a análise, mesmo que contundentes, fazem parte da campanha e ajudam o eleitor a definir seu voto. Coisa diferente é o crime eleitoral, o abuso de poder, o caixa dois, a calúnia, a injúria e a difamação, a divulgação deliberada de informações factuais que se sabe serem mentirosas – tudo isso pode e deve ser investigado e punido pelo Estado. Por sua vez, opiniões e avaliações (afirmações não factuais, portanto) infundadas, feitas de forma desleal, essas têm de ser avaliadas não pela Justiça, mas pela sociedade, que decidirá se demonstra seu repúdio a quem joga baixo na campanha. Misturar essas atribuições é caminho para uma confusão perigosa e que pode fazer das eleições de 2022 um pleito marcado pelo arbítrio, ainda mais que pela polarização.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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