Pesquisadores da proxalutamida dizem que perseguição continua

Fachada do edifício sede da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Pesquisadores que testaram o medicamento proxalutamida no tratamento da Covid-19 dizem estar sofrendo dura perseguição da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão que regula a ética em pesquisa no Brasil. Eles acreditam que a instituição está promovendo uma caça às bruxas, a despeito dos resultados positivos do estudo, apenas por motivação ideológica.

As críticas da Conep — que acusa a equipe de não ter seguido os preceitos éticos que são estabelecidos pela instituição: como a realização do estudo em local diferente do anteriormente aprovado e a não comunicação de mortes de pacientes — são expostas publicamente na figura de seu coordenador, o médico Jorge Venâncio, e são amplificadas com extensa cobertura de alguns veículos de imprensa, que os pesquisadores dizem receber informações privilegiadas de forma ilegal.

A partir de denúncias da Conep, os pesquisadores também estão sendo investigados pelo Ministério Público (MP) Estadual do Amazonas e Federal, e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que suspendeu de forma cautelar a importação e o uso de produtos contendo proxalutamida no âmbito de pesquisas científicas no Brasil.

Esta questão chegou até à Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética) da Unesco, que publicou uma resolução dizendo que, se confirmadas as acusações, o estudo pode ser “um dos episódios mais graves e sérios de infração à ética de pesquisas e de violação aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina”. A nota foi retirada do ar dias depois após os pesquisadores enviarem questionamentos à Redbioética sobre quais eram as fontes de informação. O arquivo da nota pode ser encontrado aqui.

O nome do médico endocrinologista Flávio Cadegiani, que coordenou a realização do estudo no Brasil, também foi incluído no relatório final da CPI da Covid no Senado, acusado de crime contra a humanidade por ter, supostamente, realizado estudos sem a autorização da Conep. Cadegiani disse ser conveniente a CPI tê-lo incluído no relatório de última hora, sem chance de defesa. “Do que eles estavam com medo se eu depusesse?”, disse Cadegiani, que acredita que as instituições foram induzidas a erro por declarações “tendenciosas e inverídicas” fornecidas pela Conep.

“É desgostoso, estou refém de sequestradores da pesquisa há seis meses. Perdi completamente minha dignidade, fiquei sem chão. Perdi todo o ânimo de pesquisar por conta da injustiça”, lamenta Cadegiani.

Após Cadegiani entrar na justiça para esclarecimentos sobre a conduta de Venâncio e da Conep, o Procurador da República do DF, Pablo Coutinho Barreto, apresentou parecer para que o coordenador da Conep dê explicações em juízo sobre os vazamentos de informação e sobre as declarações, difamatórias segundo Cadegiani, dadas por ele à imprensa.

Em entrevista ao portal UOL, no início de outubro, Venâncio disse que o estudo “faz parte do desprezo de Bolsonaro à ciência” e que a estratégia era utilizar o medicamento para descredibilizar as vacinas, pois elas estavam autorizadas emergencialmente, e, se houvesse medicamento para tratar a Covid, elas não seriam autorizadas.

“Venâncio não poderia jamais ter falado, quanto mais vazado documentos. Está usando a máquina pública para me destroçar. E conseguiu com bastante sucesso. Virou um tribunal de inquisição”, diz Cadegiani.

O início da disputa

A proposta do estudo com o medicamento proxalutamida, fabricado pela farmacêutica chinesa Kintor, foi aprovado pela Conep em janeiro, entre fevereiro e março foi realizada a pesquisa pela empresa de biotecnologia Applied Biology, dos Estados Unidos, em hospitais do Grupo Samel no Amazonas, e em hospitais do Rio Grande do Sul. A proxalutamida, que não tem comercialização aprovada no Brasil pela Anvisa, teve a importação autorizada para o estudo.

O anúncio feito pela equipe em março, com os resultados do estudo, recebeu uma cobertura positiva da mídia. Os cientistas não perceberam, porém, que o entusiasmo demonstrado pelo presidente Jair Bolsonaro, que publicou sobre o estudo em suas redes sociais, traria grandes problemas para eles.

Cadegiani conta que até então ele tinha um bom relacionamento com Venâncio, e que ele chegou a aprovar o relatório de um estudo com proxalutamida, mas, com a declaração de Bolsonaro, tudo mudou e sua vida “virou um inferno”.

A investigação paralela

Mesmo após o estudo ter sido encerrado, a Conep determinou a sua suspensão imediata e começou a pedir cada vez mais informações e documentos. Cadegiani diz que uma investigação iniciada pela Conep, que recebeu o nome de “orientações e acompanhamento de estudo clínico”, é algo ilegal, pois não são atribuições da Conep.

O inquérito foi vazado ao blog da jornalista Malu Gaspar, de O Globo, que publicou artigos tratando a proxalutamida de forma como a “Nova Cloroquina” de Bolsonaro — as matérias tiveram repercussão internacional, levando os pesquisadores a terem problemas para publicar a pesquisa em revistas científicas —, e incluía a fala de um “conselheiro da Conep” não identificado, pessoa que os pesquisadores agora acreditam ser o próprio Venâncio.

Processado pelos pesquisadores, o jornal O Globo foi obrigado pela justiça do Amazonas a retirar as matérias do ar sob pena de multa diária de cinco mil reais. De forma semelhante, o grupo de Hospitais Samel, instituição onde ocorreram os estudos, processou a jornalista Malu Gaspar e o jornal em R$ 500 mil cada. A justiça já ordenou o jornal a pagar 10% do valor da causa por litigância de má fé.

O presidente da Samel, Luíz Alberto Nicolau, diz que foi incluída através de uma edição de imagem o logo da entidade em um documento produzido pelos pesquisadores. Entretanto, este termo não é de responsabilidade do hospital, nem produzido por este. No último dia 21 a justiça obrigou O Globo a exibir um direito de resposta à rede de hospitais. O jornal disse que este é mais um caso de censura, mas que continuará a cobrir o assunto.

“Fizeram de forma grosseira para poder colocar o nosso nome, como se a Samel tivesse entregue o termo. Uma farsa sem medida. Nós entramos agora com direito de resposta, porque em nenhum momento eles ouviram a Samel”, disse Nicolau.

Isso fez a equipe passar a temer que dados sigilosos dos pacientes, solicitados pela Conep que fossem enviados fora do sistema oficial “Plataforma Brasil”, também fossem vazados. Em resposta à Conep, a equipe se disponibilizou a apresentar as fichas pessoalmente.

Os questionamentos da Conep

No início de setembro a Conep enviou denúncia ao MP, apontando uma série de problemas na condução do estudo, sendo os principais: a alta taxa de mortalidade dos voluntários da pesquisa; omissão de óbitos; local de realização diferente do informado à Conep; documentos não entregues pelos pesquisadores ao órgão; e conflitos de interesses entre o grupo independente de acompanhamento.

Um suposto excesso de mortes do grupo placebo é a principal acusação feita pela Conep e por pesquisadores consultados por reportagens, muitos de áreas totalmente diferentes da pesquisa clínica médica.

No estudo do Amazonas, morreram no total aproximadamente 50% pessoas no grupo placebo, contra 11% dos que tomaram o medicamento. O argumento é que era um estudo randomizado duplo-cego e os pesquisadores não deviam saber quem estava tomando o quê. Assim, quando as mortes aumentassem, eles deveriam parar o estudo para verificar o que estava acontecendo. Entretanto, quem deve solicitar a interrupção do estudo é um comitê independente, que tem o acesso a esses dados e pode dizer se é o medicamento que está causando estas mortes.

Além disso, Cadegiani conta que todos os integrantes do estudo foram infectados com a variante P1 do Coronavírus, considerada a mais letal de todas, e que a média de mortes de hospitalizados na época na Região Norte, segundo pesquisas, eram os mesmos 50% — outros dados citam uma média móvel de mortalidade variando de 23% a 63%. Dessa forma, as pessoas que morreram no estudo, conta Cadegiani, foram vítimas do vírus, e não do medicamento, sendo inverídica a acusação de que os pesquisadores foram causadores das mortes.

Cadegiani explica que os óbitos e demais eventos adversos graves foram informados no prazo correto, que segundo norma do CNS, são de até seis meses depois, uma vez que nenhuma das mortes foi decorrente da droga. Somente no caso de qualquer um desses eventos tivesse possibilidade de ter sido causado pela droga, o compromisso assumido com a Conep era de comunicação em até 24 horas, conforme protocolo aprovado.

Sobre a acusação de que o estudo foi realizado em local diferente do autorizado pela Conep, Cadegiani diz que o pedido para a realização do estudo, que teve protocolo de pesquisa autorizado, não especificava o local. Cadegiani questiona a Conep se ela realizou vistorias no hospital de Brasília onde diz ter autorizado o estudo.

O mesmo se deu com a acusação da Conep de que um número maior de pacientes do que o autorizado foi incluído no estudo. Cadegiani novamente diz que a Conep havia autorizado um número mínimo de participantes, não um máximo. E também é o mesmo argumento dado por Cadegiani sobre a presença no grupo independente de uma suposta ex-funcionária da empresa que promoveu o estudo, esta que também foi devidamente autorizada pela Conep a participar.

“Eu queria uma avaliação justa, só isso. Mas a Conep aprovou sem local e teria o dever de me orientar quanto a isso. E não houve qualquer quebra ética pela não inserção prévia dos hospitais, uma vez que todos os hospitais têm compromissos éticos”, disse Cadegiani.

Importação irregular

Na imprensa, foi dito que a Proxalutamida não é autorizada pela Anvisa para a comercialização no Brasil, o que é verdade. Mas não é o caso em questão pois se trata de uma autorização para pesquisa no Brasil e ela foi devidamente expedida pela Anvisa. Mesmo assim, foi aberto um inquérito sobre o caso, iniciado a partir de denúncias da Conep. A suspeita era de que comprimidos a mais tinham sido importados e que Cadegiani estava utilizando os medicamentos indevidamente em sua clínica.

A Anvisa chegou a afirmar à imprensa que a importação dos medicamentos tinha sido irregular, mas voltou atrás e afirmou ter se enganado porque o nome da substância não constava na descrição do produto no pedido de importação. Mesmo assim, a Anvisa manteve a suspensão de novas importações do medicamento.

No final do mês de setembro, em Brasília, a Anvisa realizou uma visita na clínica de Flávio Cadegiani, para verificar se os medicamentos poderiam estar sendo utilizados fora de pesquisa clínica autorizada. Não acharam comprimidos de proxalutamida e confirmaram que a proxalutamida não era prescrita. Cadegiani diz que os medicamentos que sobraram foram devidamente informados e disponibilizados à Anvisa.

Investigações

A Conep afirmou à Gazeta do Povo que não realizou questionamentos quanto à segurança da proxalutamida, mas quanto ao cuidado com a segurança e os direitos dos participantes de pesquisa. Dessa forma, diz a Conep, a Comissão fez uma representação junto ao Ministério Público Federal para investigação.

“Quanto ao suposto vazamento de informações, está sendo apurado em sindicância pelo Conselho Nacional de Saúde”, afirmou.

A Anvisa informou que, diante dos indícios de dissonância entre as importações realizadas e as pesquisas aprovadas pela Conep, e de assimetrias de informação entre as importações requeridas pelo pesquisador e as pesquisas científicas aprovadas pela Conep, observadas em análise inicial, “instalou investigação e notificou os serviços de saúde supostamente envolvidos na condução de pesquisas científicas com a substância. Instaurou processo administrativo sanitário para apuração de possíveis infrações sanitárias decorrentes da apresentação, pelo importador, de documentos ou informações que tenham por objetivo induzir a Agência à anuência de importação irregular de medicamentos para uso em humanos; e solicitou informações à Conep sobre todas as pesquisas aprovadas com o uso da substância no Brasil.”

Além disso, a agência suspendeu, de forma cautelar, a importação e o uso de produtos contendo a substância proxalutamida, no âmbito de pesquisas científicas no Brasil. A Anvisa disse também que a ela compete apenas autorizar a importação dos produtos sujeitos à vigilância sanitária a serem utilizados nos estudos e que o parecer da instância ética é o balizador da importação.

O Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul informou que o procedimento aberto segue em instrução e não deu mais informações sobre o caso.

Até o momento não houve retorno da Redbioética Unesco ou seu coordenador de relações internacionais, Volnei Garrafa.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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