O Supremo precisa aprender a dizer não

A atual postura institucional do Supremo Tribunal Federal está reforçando sua autoridade pública ou representará uma banalização da alta jurisdição constitucional, fragilizando o sentimento de justiça no seio da sociedade brasileira? A pergunta posta toca em questão republicana sensível e absolutamente fundamental ao equilibrado funcionamento das instituições, possibilitando uma riqueza de análises e pertinentes ponderações.

Sim, é fato público e notório que a suprema corte atua em franca hipertrofia de funções, atraindo para si âmbitos de decisão que, em tese, exigiriam prévia deliberação e prioritária escolha política do Legislativo ou do Executivo. Ocorre que, no chão da vida, a apatia de alguns e a covardia parlamentar de outros, associadas a uma aguda fragmentação do poder governamental administrativo – marcado pela ausência de lideranças referenciais, pela inabilidade de construção de maiorias estáveis (a decadência dos partidos) e pela falta de comunicação social eficaz –, reduzem o espaço de consolidação estrutural da política democrática, substituindo a arte da negociação pela facilidade do litígio.

Tal deslocamento de perspectiva garante certa praticidade ao jogo político, pois, uma vez provocado, o Supremo irá decidir, encerrando, bem ou mal, a controvérsia estabelecida. Todavia, a solução prática pode ser um mero paliativo ocasional; anestesia-se a dor, mas não se cura a infecção. E mais: a subversão das instituições da Justiça em palco de debates políticos cotidianos desvirtua a essência formativa do voto, aliviando a classe política de realizar trabalhos democráticos indelegáveis com consequente desmedida exposição do STF.

Sem cortinas, determinados vícios profundos da política, em uma democracia autêntica, se resolvem unicamente pelo voto, não por litígios judiciais.

Ora, sentenças judiciais resolvem casos jurídicos, mas não pacificam problemas políticos. Logo, o relevo corrente do STF não deixa de representar uma espiral crescente de microentrechoques difusos que impossibilitam à corte atuar nas macrossoluções vinculadas aos preceitos de segurança jurídica e estabilidade social da República.

No descortinar dos acontecimentos, a realidade é categórica: o Supremo Tribunal Federal precisa aprender a dizer “não”. A consciência e responsabilidade de uma corte constitucional é medida pelos limites de sua atuação institucional, evitando a extravasão de competências ou o aviltamento da suprema jurisdição. Portanto, o Supremo não pode mais assumir problemas que não são seus; a corte não é uma UTI legislativa nem um divã executivo.

Sabidamente, a Constituição é dotada de densidade normativa complexa, portando regras de competência jurídica (Judiciário) e normas de competência política (Legislativo e Executivo). Tais âmbitos de competência não são melhores nem piores reciprocamente considerados, mas possuem obrigatória distinção de titularidade, iniciativa e discernimento. Frisa-se que a linha que separa o universo da política do mundo jurídico traduz discussão constitucional antiga, tendo natural maleabilidade à luz das circunstâncias concretas do jogo do poder. Em norte seguro, a clássica lição de Pedro Lessa, escorada na inteligência superior de Bryce, Thayer e Hitchcock, pontifica que “as questões puramente políticas não cabem na competência dos tribunais”.VEJA TAMBÉM:

Em complemento, a sabedoria de Gustavo Zagrebelsky, após ver e viver os desafios da Corte Constitucional italiana, externou que a Constituição “é o que não se vota; ou melhor, é o que já não se vota, porque já foi votado de uma vez por todas, na sua origem”. Portanto, quando a efetividade material da Constituição não se realizar em si mesma e, por assim ser, depender de um ato de deliberação ou votação política, não cabe aos tribunais assumirem jurisdicionalmente encargos prematuros, cuja competência é exclusiva dos demais poderes republicanos. Em tempo, as técnicas excepcionais de inconstitucionalidade por omissão não apagam a velha máxima de que o Supremo pode muito, mas não pode tudo.

Sem cortinas, determinados vícios profundos da política, em uma democracia autêntica, se resolvem unicamente pelo voto, não por litígios judiciais. A maturidade política de um povo também se realiza na consciência dos seus erros. A experiência vivida demonstra que nem sempre acertamos ao votar; nem sempre o ganhador é um bom governante; nem sempre elegemos parlamentares dignos. Nas democracias, o erro – embora indesejado – é possível, pois só as ditaduras acertam sempre.

Saber dizer motivadamente “não”, além de prudência, demonstra o exato conhecimento de si. São os limites da ação consciente que estabelecem a responsabilidade da conduta praticada. Na busca da otimização constitucional do possível, o equilíbrio ponderado faz lembrar: competências ilimitadas, supremo arbítrio.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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